Penso não cometer nenhuma enormidade ou desvio à verdade (claro que existiram os que “por ser de Direita” acreditaram sempre que só sairia asneira, pelo que são os profetas que profetizaram a profecia cumprida) se escrever que a maioria dos professores teve esperança, em 2011, que Nuno Crato fosse capaz de, em coerência com o muito que disse e escreveu publicamente, romper com a tradição demagógica e facilitista de querer garantir o sucesso a todo o custo e com todos os truques disponíveis na cartilha para cumprir calendários eleitorais.
O retorno (ou avanço) para uma cultura de rigor nas escolas passava por quebrar alguns lugares comuns da governação em Educação, fugindo quer do espartilho conceptual do pedagogês peganhento e circular, herdado de um passado mais ou menos recente, quer das inevitabilidades financeiras à tio patinhas dos borginhos (leia-se pseudo-liberais de aviário, inspirados pela ideologia canhestra dos neocons do tea party) dominantes na entourage do actual PM.
Essa cultura de rigor, certamente impopular em alguns círculos, incluindo entre alguns professores e diversos especialistas, passava por tratar a autonomia das escolas de forma séria, de não entrar em questiúnculas e medidas de pilinhas em público com os sindicatos e de, por uma vez, não apresentar os professores como o eterno problema da Educação que é preciso resolver, através do extermínio, domesticação e/ou humilhação até fazerem o que queremos sem chiarem.
Infelizmente, Nuno Crato optou por fazer quase tudo ao contrário e por ceder cada vez mais, não ao alegado “monstro” da 5 de Outubro que pretendia implodir, mas ao facilitismo demagógico das medidas para distrair a opinião pública, enquanto cedia de forma quase completa aos interesses mal disfarçados em torno da mesa do orçamento do MEC.
Em vez de verdadeiro rigor e de apoio a uma cultura de exigência nas escolas, preferiu fechar o dossier da ADD com uma solução da pior fancaria e alargar os exames no Ensino Básico, sem associar outras medidas a essa ou a enquadrar numa forma de responsabilização séria de todos os actores pelos resultados, enquanto reduzia o currículo apenas com a finalidade de poupar em horários de professores.
Reparemos que, no essencial, o actual MEC manteve a postura de culpar sempre, e em primeiro e quase único lugar, os professores e as escolas pelo mau desempenho dos alunos, nisso pouco se distinguindo de diversos antecessores, sempre disponíveis para colher os louros por bons resultados, mas rápidos a alijar responsabilidades pelos fracassos.
Parece-me mais ou menos óbvio que um esforço por aumentar a exigência do trabalho com os alunos leva, quase inevitavelmente, a um aumento (maior ou menor) do insucesso a curto prazo. Contra os que gritam contra a “exclusão” causada pelo insucesso, seria necessário tomar medidas para minimizar esses efeitos, logo desde o 1º ciclo.
Nada disso foi feito, preferindo-se castigar as escolas com piores resultados e beneficiar apenas uma elite das que conseguissem melhores resultados em exames e nesse caso teriam direito a mais crédito horário e meios. Foram assinados contratos de autonomia, mas as escolas em causa ficaram ainda mais espartilhadas no seu funcionamento, com grelhas de sucesso a cumprir no curto prazo, o que condiciona sempre os órgãos de gestão a pressionar os corpos docentes para produzirem sucesso e aumentarem as taxas de transição, mesmo em piores condições de trabalho.
Para dar uma ainda maior sensação de “sucesso” foi criada em contra-relógio a opção “vocacional”, para a qual se anunciou querer enviar uma proporção assinalável dos alunos do ensino Básico, em especial os já marcados por algumas retenções, dando-lhes o bónus de não fazerem os Exames Nacionais de final de ciclo numa situação de win-win: os alunos a passarem sem grandes problemas (se chumbarem é porque os professores não entenderam o “sistema”) e o MEC limpar as pautas dos exames de muitos milhares de expectáveis classificações baixas.
A boa verdade é que este MEC criou uma bolsa enorme de “sucesso” desta forma, permitindo que, ao mesmo tempo que anunciava mais exames, menos alunos os fizessem a partir do 6º e em especial 9º ano.
Engenhoso, certo?
Digno de um truque processual dos tempos das RGA de Liceu, apostando na alegria do povo ver as criancinhas passarem e o sucesso aumentar, mesmo em vésperas de eleições.
E quem pensa o contrário é retrógrado, defende a exclusão, o despesismo, é mau professor e pai de família, nisso confluindo desde´os pitonisos de alguma esquerda igualitária à força desde que eles encabecem o movimento aos gurus daquela direita óptima a abocanhar os subsídios públicos, enquanto reclama pela eficácia do “sistema”.
Mas o problema é que, pelo caminho, se esconde a forma de funcionamento de muitos desses cursos vocacionais, da intolerável pressão sobre os conselhos de turma para assegurarem níveis de sucesso que não comprometam a avaliação da escola, ao mesmo tempo que se desincentiva de forma bem activa a acção disciplinar sobre os alunos que não cumprem o mínimo das regras de civilidade numa sala de aula.
A verdade, que o MEC oculta ou então apresenta como pura responsabilidade dos professores porque é mais fácil assim do que afrontar com coragem “as famílias”, é que o trabalho nas salas de aula está ainda pior do que em outros tempos, em especial nestas fast lanes criadas para os indesejáveis, aos quais se nega um tipo de apoio individualizado para superarem os seus problemas de aprendizagem ou de comportamento (muito menos dos condicionalismos económicos de cada vez mais alunos do próprio Ensino Secundário) em troca de um sucesso garantido quase à força.
Felizmente, ou não, conheço demasiadas situações, distantes ou próximas, em que o ónus da culpa recai sempre sobre @s professor@s que exigem mais do que a presença física dos alunos na sala de aula (e às vezes nem isso à custa de muita “justificação” abertamente injustificada), seja nestas coisas “vocacionais”, seja em turmas ditas “regulares”.
E como não gosto de deixar as coisas apenas pela enunciação, posso mesmo dar o exemplo de uma turma minha em que, quase à 100ª aula ainda é necessário perder os 15 minutos iniciais a recordar regras básicas de convivência num espaço público entre pessoas, já nem digo entre alunos e professores numa sala de aula. Não se agredirem brutalmente a caminho da sala, não se ofenderem verbalmente e à família de forma profusa, mesmo já dentro da sala, não ficarem a falar como se não existisse um professor a chamar-lhes a atenção, nem sequer retirando o material da mochila, não simularem escarros para cima dos colegas ou para dizerem que precisam ir à casa de banho cuspir e lavar a boca, não comentarem partes da anatomia das colegas a qualquer momento, sabendo que se o professor os mandar sair da aula é porque não sabe dominar a turma, gritando para os colegas que precisam de um lenço porque estão com o nariz cheio de ranho e muitos etc que poderiam ser expostos com base numa única aula de 90 minutos.
Sou um mau professor por descrever isto que observo e vivo? Não sei, mas é verdade que nem quero saber o que muita gente pensa, desde que a minha consciência esteja tranquila com o que faço.
Se isto que apresento menoriza o trabalho dos professores e os torna vulneráveis, se dá uma má imagem das escolas públicas? Muito pelo contrário, pois este é um trabalho profundamente difícil, de um enorme desgaste psicológico e mesmo físico, que quase ninguém parece apreciar especialmente quando opta por ofender os professores como sendo quem não sabe fazer mais nada, dando a entender que é coisa simples e não algo tão ou mais exigente que muitas outras funções profissionais socialmente mais prestigiadas pela opinião publicada. E as escolas fazem cada vez mais um trabalho que transborda de uma forma gritante das suas funções tradicionais e das suas próprias valências.
A verdade é que muitos dos que aproveitam testemunhos destes para ofender uma classe profissional, quando confrontados com o convite para irem uma semana tomar conta das coisas com 6, 8 ou 10 turmas, dizem logo “deus me livre” pois sabem que seriam incapazes de o fazer mas amesquinham quem o faz.
E o que é pior, exigem sempre “mais com menos”, acusam os professores de “corporativos” quando defendem os seus direitos (mas agacham-se quando são outros a exigir os seus direitos) e aparecem publicamente a apontar o dedo acusador, quando não a reclamar o “melhor para os nossos filhos” (mesmo quando são já avós ou os filhos andaram sempre em casulos amigos) ou “os direitos das famílias”, quando não mesmo aquela falácia da defesa da boa aplicação do “dinheiro dos contribuintes”.
Regressemos ao início desta já longa prosa.
Nuno Crato foi um fracasso completo como MEC.
E foi um fracasso completo porque acabou a gerir o status quo que amarra o MEC na sua acção e é falso que esse status quo seja o imposto por sindicatos ou pelo corporativismo dos docentes. É o status quo que leva a que os sucessivos ministros da pasta se tornem uma confraria com mais pontos de encontro do que de divergência, com uma continuidade na prática maior do que parece, pois a opção por um constante jorrar legislativo é uma afinidade como qualquer outra e os chavões vácuos (“autonomia”, “rigor”, “responsabilização”, “descentralização”) rapidamente se tornam comuns nos seus discursos públicos, quantas vezes significando o seu inverso.
Nuno Crato é um digno representante da ideologia do “sucesso” a todo o custo porque, apesar de diferenças em algumas estratégias, não mudou nada nos objectivos da sua acção (“apresentar resultados”, seja a que preço for, nas datas certas) e nos alvos preferenciais e quase exclusivos do seu discurso “responsabilizador” (os professores são sempre apresentados como determinantes para o sucesso dos alunos, excepto quando eles apresentam mesmo bons resultados).
Que depois todos estes erros desaguem, a jusante, nas Universidades, é apenas uma consequência natural, o mesmo se passando com a expansão da “cultura de sucesso” nos cursos superiores à bolonhesa, espécie de patchwork académico massificado, em que o que interessa é, de novo, “apresentar resultados” a qualquer custo e com o menor esforço.
Mais com menos.
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(Adenda personalizada: há pelo menos 3 alunos meus da tal turma referida mais acima que vão receber o seu teste de Janeiro sem classificação atribuída devido ao seu comportamento durante a sua realização, mesmo se eu vou corrigir todas as questões. Se isso pode trazer reclamações… ? Vamos nessa!)