Não se trata propriamente de memória selectiva, aquela que apaga e acende os acontecimentos conforme. Trata-se de uma forma algo diferente, de obliterar a memória por motivo de conforto e deixar que quem parece que aguenta se aguente. É uma forma cobarde de viver, mas que se percebe, num tempo de medos vários e receios, muitos, de solidão.
É complicado quando se depende deste tipo de memória para reconstituir uma verdade, restituir os factos à sua realidade, recuperar uma parcela de dignidade ao que se perdeu.
É complicado ter de ignorar que o nosso carácter pode ser vítima desse súbito nevoeiro que acomete quem teria o poder de fazer justiça onde ela desapareceu.
E tanto mais custa quanto se sabe que não foi esquecimento, confusão, o que aconteceu. Falta de coragem, apenas. Medo de. Opção por agarrar o que há, não arriscando ser.
Custa ver isso. Saber que há quem viva assim.
Aos poucos desiste-se. De quem assim é. Porque se sabe que apenas temos ali um simulacro. De vida. De pessoa.
Só nós sabemos porque o Garrido tem aquele ar tão feliz. É uma questão de posicionamento…
Foto da Margarida Soares Franco. Aguardo mais material sobre a parte inicial (acho que a Ana e Olinda também registaram a actividade e passividade alheias), pois quando cheguei já parte do happening tinha escorrido.
O pós-evento também foi interessante, mas já com postura mais dentro do armário.
… pois é a resposta a um mail de 10 de Setembro (se quiserem, também anda por aí, algures no gmail…). Esta cronologia hipotética levanta-nos algumas questões sobre declarações e novidades recentes que, confirmando-se datação por Carbono 14, não seriam novidades para todos, mas apenas para a larga maioria:
Caro Senhor Secretário-Geral,
Em resposta à vossa mensagem abaixo pede-me o Senhor Secretário de Estado Adjunto e da Educação que informe que de acordo com o disposto nos artigos 28.º e 29.º do Decreto Regulamentar n.º 2/2010, de 23 de Junho, na avaliação dos docentes no exercício das funções de coordenador de departamento e de relator só está excluída a qualidade científica do trabalho desenvolvido pelo docente, sendo aplicáveis todas as outras dimensões de avaliação constantes do n.º 2 do artigo 45.º do ECD.
Assim sendo nada obsta a que possa haver observação de aulas dado que a mesma é facultativa.
Com os melhores cumprimentos,
Célia Chamiça
Chefe do Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e da Educação
Ouvi mais uma bateria de especialistas a falar dos problemas do orçamento e daquilo que deve ser feito do lado da despesa e da receita e tal, aquelas coisas que eles falam como se estivessem a fazer contas no papel almaço da mercearia.
Aliás, tomara nós que eles fossem bons merceeiros, que nem isso são, meros adivinhões sempre falhados, não fosse a econometria a medição dos falhanços entre as previsões dos economistas e aquilo que depois eles dizem saber corrigir.
Mas em toda sua sabedoria, apesar da rotunda discrepância, a maioria clama, com indignação, tremor e quase chispa no olhar: não se pode sacrificar mais o rendimento das famílias, há que cortar na despesa do Estado!!!
Por despesa do Estado entende-se quase sempre – que outra coisa não querem dizer – corte nos rendimentos dos funcionários públicos, seja reduzindo-lhes o emprego, seja reduzindo-lhes o salário.
O que me levanta uma questão, quiçá bizantina, quiçá otomana: mas será que funcionário público não tem família? Será que cortando nos salários dos funcionários públicos não se está a diminuir o seu rendimento disponível?
Interrogo-me: família de funcionário público é coceira em genitalia alheia, como quem diz colírio ardente em olho terceiro?
Existem. Borbulham. Chegam à superfície, porque os ar as impele. Apercebemo-nos dos contornos. Questionamos. É necessário o silêncio. Estratégia, mas não só. Agora anoitece mais cedo e os gatos, mais do que pardos, movem-se com rapidez na escuridão. Ouvem à distância.. Nada é seguro até (o) ser.
(…) tal vez la mejor manera de definir a una sociedad cerrada sea diciendo que en ella la ficción y la historia han dejado de ser cosas distintas y pasado a confundirse y suplantarse la una a la otra cambiando constantemente de identidades como en un baile de máscaras.
En una sociedad cerrada el poder no sólo se arroga el privilegio de controlar las acciones de los hombres —lo que hacen y lo que dicen—; aspira también a gobernar su fantasía, sus sueños y, por supuesto, su memoria. En una sociedad cerrada el pasado es, tarde o temprano, objeto de una manipulación encaminada a justificar el presente.
(…)
Organizar la memoria colectiva; trocar a la historia en instrumento de gobierno encargado de legitimar a quienes mandan y de proporcionar coartadas para sus fechorías es una tentación congénita a todo poder. Los Estados totalitarios pueden hacerla realidad. En el pasado, innumerables civilizaciones la pusieron en práctica.
(…)
Al mismo tiempo, un estricto sistema de censura suele instalarse para que la literatura fantase e también dentro de cauces rígidos, de modo que sus verdades subjetivas no contradigan ni echen sombras sobre la historia oficial, sino, más bien, la divulguen e ilustren. La diferencia entre verdad histórica y verdad literaria desaparece y se funde en un híbrido que baña la historia de irrealidad y vacía a la ficción de misterio, de iniciativa y de inconformidad hacia lo establecido. (Vargas Llosa, pp. 27-29 da edição acima)
Sempre achei curiosa esta expressão – pessoas de uma certa idade – que é vizinha de uma outra – pessoas de cor – que me suscita(m) invariavelmente a observação de que eu tenho uma certa idade e também tenho cor.
Mas adiante.
O que está em causa é grave, porque é mais um sinal do abandono físico e humano do país que incomoda os mega-modernaços.
A escola é isso mesmo: Escola. Espaço de aprendizagem, espaço de preparação. É estranho quererem impor modelos pedagógicos democráticos quando arrancaram à força as práticas democráticas do funcionamento das escolas.
Os professores devem ser inspiradores, na sua justa medida, da tolerância democrática, o que não se deve confundir com igualitarismo de funções, direitos e deveres. Numa escola, numa sala de aula, na sociedade todos têm um conjunto de papéis, os quais merecem respeito mas não se devem indiferenciar.
O mau discurso eduquês – incluindo o sindico-eduquês – cometeu o erro de confundir tudo. A democracia aprende-se, antes de se exercer na plenitude dos direitos. A não ser assim, não se entende que só se possa votar aos 18 anos.
Ensinar a democracia pela sua prática não significa que todos mandem o mesmo, que cada um ache que a sua liberdade é a suprema e absoluta. A Liberdade é um valor que se deseja absoluto, mas isso só é assim quando as liberdades não se atropelam umas às outras.
Nesta matéria, uma ideologia requentada de outrora, partilhada pelos que ainda são e pelos que já foram, tornou a escola uma espécie de cruzamento, em hora de ponta, sem sinalização, regras de prioridade e ordem para todos avançarem em noem da sua liberdade. Sabemos como as coisas acabam dessa forma.
Há asneiras que só faz bem serem travadas quanto antes. Há coisas que só pecam por tardias. As razões imediatas para isso são outra conversa, assim como o uso a dar às horas de AP e EA.
Agora o que não consigo é andar anos a criticar uma coisa por existir sem grande enquadramento e sentido e, quando decidem acabar com ela, criticar essa decisão.
A Educação está cheia de cataventos. E há gente que deveria perceber que certas alianças, as são apenas de ocasião, até que alguém sinta que já lhe dão a atenção que julga merecida na 5 de Outubro por favores passados.
Professores acompanham encarregados de educação nas críticas ao ministério.
Pais e professores dão nota negativa a algumas das bandeiras do Ministério da Educação (ME). Estudo Acompanhado e Área Projecto deixados a meio, a continuidade da formação cívica questionada, professores colocados nas escolas apenas por quatro anos e o reordenamento da rede escolar são as medidas mais criticadas.
“O que precisamos é de bandeiras que sejam concretizadas e continuadas”, defende o secretário-geral da Federação Nacional de Educação. Para João Dias da Silva, “há no nosso país um certo sentimento autofágico”. E justifica: “Achamos sempre que estamos a fazer a última moda e que é melhor do que a anterior.” Algo que é visível, por exemplo, na criação das áreas curriculares não disciplinares de Estudo Acompanhado, Área Projecto e Formação Cívica.
“A redução das aulas de 50 para 45 minutos, criando estas áreas transversais, foi uma invenção da secretária de Estado da Educação de António Guterres, Ana Benavente”, recorda Dias da Silva, frisando que a FNE sempre se opôs a esta decisão. “Agora acaba-se com elas sem se saber o que vai acontecer a esses períodos”, adianta. No caso da Área Projecto, a disciplina pesava na classificação final do aluno e podia ditar a sua retenção em caso de negativa.
O presidente da Confap traça duras críticas ao fim do Estudo Acompanhado e da Área Projecto, mas recorda que “os projectos estão a correr e mesmo que o Orçamento seja aprovado, isso só se aplicará no próximo ano lectivo”. “Agora esses créditos de horas serão geridos pelas escolas, seja para acompanhar o estudo, seja para os projectos ou até para formar alunos”, frisa. Porém, Albino Almeida não deixa de criticar o “corte cego” nos orçamentos das escolas, devido à interferência do Ministério das Finanças.
Em tempos de crise não é possível ser muito selectivo na escolha dos aliados, mas há um mínimo de exigência a cumprir.
Ainda não colocado em seu sítio. Foto para registo, desde já, da prenda recebida. Prometedora, embora nos tempos que corram, se exija verso, mas também frente. Conservadorismos…
Na qualidade de relatora e avaliada, tive necessidade de fazer uma leitura cuidada da legislação relativa à avaliação de desempenho docente. Esta necessidade adveio das minhas dúvidas e das dúvidas dos inúmeros colegas do agrupamento que me abordaram sobre o assunto.
Assim, no respeito por uma deontologia profissional por que me pauto, apesar de não me estar sido atribuída a tarefa, elaborei uma leitura conjunta e comentada da legislação em vigor.
Coloco-a ao dispor de V. Exa. e, se algo de menos correcto for detectado no teor dos comentários, solicito que mo comunique.
Tomo a liberdade de dar conhecimento deste mail à coordenadora do departamento a que pertenço bem como de disponibilizar o meu trabalho aos colegas que julgar por oportuno.
De que serve votar em duzentas e tal criaturas, tidas como representantes da Nação, se depois tudo é decidido na casa de alguém de que nos pensávamos ter livrado há 15 anos, com outro em quem não votámos para nada, depois do PM levar nas orelhas lá fora?
Já viram as grelhas que o ME mandou para as escolas preencherem até meio da próxima semana com o balanço das reuniões de trabalho do ano lectivo passado sobre os novos programas de Língua Portuguesa?
Aquilo só falta perguntar a marca do perfume dos presentes e a cor da lingerie das ausentes.
O mesmo para este ano. Cada sessão vai ser inventariada, triturada em parâmetros, rebobinada em estatísticas e regurgitada sei lá como.
Há mulheres que querem que o seu homem seja o Sol. O meu quero-o nuvem. Há mulheres que falam na voz do seu homem. O meu que seja calado e eu, nele, guarde meus silêncios. Para que ele seja a minha voz quando Deus me pedir contas.
No resto, quero que tenha medo e me deixe ser mulher, mesmo que nem sempre sua. Que ele seja homem em breves doses. Que exista em marés, no ciclo das águas e dos ventos. E, vez em quando, seja mulher, tanto quanto eu. As suas mãos as quero firmes quando me despir. Mas ainda mais quero que ele me saiba vestir. Como se eu mesma me vestisse e ele fosse a mão da minha vaidade.
Há muito tempo, me casei, também eu. Dispensei uma vida com esse alguém. Até que ele foi. Quando me deixou, já não me deixou a mim. Que eu já era outra, habilitada a ser ninguém. Às vezes, contudo, ainda me adoece uma saudade desse homem. Lembro o tempo em que me encantei, tudo era um princípio. Eu era nova, dezanovinha.
Quando ele me dirigiu palavra, nesse primeirissímo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comercia palavra, em negoceio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra e me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada
Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira vez. Como se aquele momento fosse, afinal toda minha vida. Aconteceu aqui, neste mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por a parava. A brisa sem voar, quase nidificava. Vez voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.
No entanto, algo nele aparentava distância. O último escapava entre os seus dedos. Não levava o cigarro à boca. Em seu parado gesto, o tabaco aí mesmo se consumia.
Ele gostava assim: a inteira cinza tombando intacta no chão. Pois eu tombei igualzinha àquela cinza. Desabei inteira sob o corpo dele Depois, me desfiz em poeira, toda estrelada no chão. As mãos dele: o vento espalhando cinzas.
Nesse mesmo pátio em que se estreava me coração tudo iria, afinal, acabar. Porque ele anunciou tudo nesse poente. Que a paixão dele desbrilhara. Sem mais nada, nem outra mulher havendo Só isso: a murchidão do que, antes, florescia. Eu insisti, louca de tristeza. Não havia mesmo outra mulher? Não havia. O único intruso era o tempo, que nossa rotina deixara crescer e pesar. Ele se chegou me beijou a testa. Como se faz a um filho, um beijo longe da boca. Meu peito era um rio lavado, escoado no estuário do choro.
Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.
Deixem-me agora evocar, aos goles de lembrança. Enquanto espero que ele volte, de novo, a este pátio. Recordar tudo, de uma só vez, me dá sofrimento. Por isso, vou lembrando aos poucos. Me debruço na varanda e a altura me tonteia. Quase vou na vertigem. Sabem o que descobri? Que minha alma é feita de água. Não posso me debruçar tanto. Senão me entorno e ainda morro vazia, sem gota.
Porque eu não sou por mim. Existo reflectida, ardível em paixão. Como a lua: o que brilho é por luz de outro. A luz desse amante, luz dançando na água. Mesmo que surja assim, agora, distante e fria. Cinza de um cigarro nunca fumado.
Pedi-lhe que viesse uma vez mais. Para que, de novo, se despeça de mim. E passados os anos, tantos que já nem cabem na lembrança, eu ainda choro como se fosse a primeira despedida. Porque esse adeus, só esse aceno é meu, todo inteiramente meu. Um adeus à medida de meu amor.
Assim, ele virá para renovar despedidas. Quando a lágrima escorrer no meu rosto eu a sorverei, como quem bebe o tempo. Essa água é, agora, meu único alimento. Meu último alento. Já não tenho mais desse amor que a sua própria conclusão. Como quem tem um corpo apenas pela ferida de o perder. Por isso, refaço a despedida. Seja esse o modo de o meu amor se fazer eternamente nosso.
Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada, Ninguém no plural.
Ninguéns.
Mia Couto, O Fio das Missangas, pp. 47-49
(da edição que andou a sair com a Visão, que a da Caminho está arrumada ali atrás)