Dezembro 2005


 “Nos tempos que correm, um professor sabe que,
por muito alta que seja a sua qualificação profissional,
por muito inatacável que seja a sua conduta, poderá
acabar por ser culpabilizado pelos pais dos alunos e
pelas autoridades académicas. Executa um trabalho
difícil e necessário, fundamental mesmo, mas mal pago,
mal considerado, que o esgota fisicamente e não lhe traz,
na maior parte das vezes, qualquer compensação,
agradecimento – ou sequer respeito.?
(A. Muñoz Molina, Visão, 17 a 23 de Fevereiro de 2000)
  
?Não vale a pena recitarem-me todas as vantagens do
ensino de massas, dizerem-me que esta ignorância se nota
mais porque o “povo? aparece na televisão e no tempo do
Eça os mesmos que agora fazem a escolaridade obrigatória
Eram socialmente invisíveis a não ser quando se revoltavam,
eram analfabetos e emigravam descalços nos porões dos
barcos para o Brasil. Mas não é esse o problema, nem aí
me enredam, A questão está em saber se para ilusoriamente
se dar a todos aquilo que pouco é mais do que uma versão
moderna do analfabetismo – convém lembrar que os padrões
mínimos entretanto subiram – se destruiu o equivalente à
elite burguesa e interessada para que Eça escrevia. Se, somado
e subtraído tudo, não se está pior com menos gente em termos
absolutos e percentuais a ter um mínimo de cultura geral.?
(J. Pacheco Pereira, Público, 5 de Outubro de 2000)
 
  
A massificação do ensino e a obrigatoriedade da frequência da escolaridade básica até ao 9º ano ou aos 15 anos de idade, no sentido de universalizar o acesso à Educação em Portugal e assim incluir todos os que dela eram anteriormente afastados por questões socio-culturais ou económicas, originou que nas escolas se verificasse a necessidade de resolver crescentes problemas de enquadramento de alunos com sintomas de aparente inadaptação ou desmotivação em relação à Escola.
Por outro lado, a implementação de sucessivas medidas de “reforma? do sistema educativo e do funcionamento das instituições escolares, nomeadamente no que se refere à estrutura curricular, ao regime disciplinar e aos mecanismos de avaliação, sem um adequado acompanhamento ao nível da dotação de meios técnicos e financeiros das Escolas e de formação específica dos docentes, permitiu a instalação de sentimentos de desconforto e mesmo desorientação entre muitos elementos dos corpos docentes das Escolas quanto ao sentido do seu trabalho e aos critérios que o norteiam.

A prevalência, no plano político, de uma estratégia meramente virada para o “sucesso estatístico? dos alunos, no sentido de eliminar um dos indicadores mais desfavoráveis de Portugal no âmbito da União Europeia, conduziu à promoção e generalização de um certo “facilitismo? pedagógico por muito que seja afirmado o contrário.
De forma errada e equívoca, a democratização do ensino (objectivo fundamental) que fomentou a entrada na Escola de muitos dos que antes eram dela excluídos, acabou por ficar asssociada na última década a um abaixamento dos critérios mínimos para a transição dos alunos ao longo da escolaridade (estratégia errada), fenómeno que foi alastrando aos diversos níveis de ensino e que já se manifesta no próprio Ensino Superior. Ou seja a democratização do acesso à Educação não parece ter tido equivalente numa democratização da qualidade do ensino e os efeitos deste fenómeno podem ser, a médio ou longo prazo, bastante graves nos níveis de formação da nossa população e em particular da nossa mão-de-obra, mesmo da especializada e mais qualificada.

Para além disto, foram criados entraves burocrático-administrativos ao trabalho do professor, ao mesmo tempo que se foi difundindo uma ideologia tendente a despertar sentimentos de culpabilidade nos docentes que se mostrassem mais exigentes e menos adeptos das novas teorias pedagógicas em implementação. Os docentes mais preocupados em desenvolver padrões de exigência e qualidade no trabalho dos alunos, passaram a ser designados como elitistas, selectivos e, em última instância, quase como “anti-democráticos?. Não deixa de ser curioso, aliás, que aqueles que propalam a democratização e o espírito da tolerância sejam dos primeiros a mostrar-se intolerantes com as opiniões discordantes da sua cartilha. E, por outro lado, não deixam de transparecer implicitamente a ideia que, eles sim, associam o estatuto sócio-económico às capacidades intelectuais e de aprendizagem individuais.

Esta falsa “democratização? permitiu, entre algumas consequências positivas, o desenvolvimento de fenómenos algo perversos para um espírito verdadeiramente democratizador como:
 
–         A generalização do descrédito na qualidade do sistema público de ensino por parte da sociedade, o que se reflecte numa crescente “migração? de alunos para o sector privado.
–         Como consequência do fenómeno anterior constata-se o crescimento do recurso, por parte de quem dispõe de meios económicos para isso, pelos estabelecimentos de ensino privado que, de forma correcta ou não, são percepcionados como de melhor qualidade.
–         A desmotivação, ou crescente “desleixo?, de muitos alunos perante um panorama em que os que apresentam melhor desempenho não são devidamente compensados pelo seu trabalho, enquanto que são criados múltiplos sistemas de favorecimento dos que, quantas vezes explicitamente, se mostram desinteressados em melhorar o seu desempenho.

Estes fenómenos conjugaram-se criando, em nome de uma “escola democrática? e da “igualdade de oportunidades?, mecanismos homogeneizadores do desempenho nas escolas públicas mas permitindo, em simultâneo, o agravamento das desigualdades no contexto da sociedade com a “fuga? para o sector privado de todos aqueles a quem os progenitores podem facultar uma educação que consideram de melhor qualidade. Entretanto, a Escola pública começa a tornar-se, em muitas zonas do país, em particular nos maiores centros urbanos, abrigo apenas para os que dela não podem escapar e que acabam por ficar desmotivados por sentirem que, de alguma maneira, acabam por continuar excluídos. E isto aplica-se não só a alunos como aos próprios professores que se vêem na contingência de trabalhar em situações de risco, quase sem meios, e são obrigados a tentar resolver na Escola gravíssimos problemas de exclusão social, que não são resolvidos pela Sociedade no seu todo.

A Escola pública, perante a incapacidade da Sociedade eliminar ou diminuir os mecanismos geradores de desigualdade no seu seio, acabou por tornar-se quase que um dos últimos refúgios em que se espera que (não se sabe bem como, pois o discurso mesmo se sedutor é vago) essas desigualdades sejam esbatidas. É assim que surgem diversas iniciativas para, na Escola, se conseguir dar aos mais desfavorecidos um pouco do que lhes falta fora dos seus portões. Os complementos educativos, as aulas de apoio, as salas de estudo e quantas outras estratégias são, em muitos casos, fórmulas bem-intencionadas para compensar situações de Necessidades Educativas Especiais ou de carência de recursos da Família para o acompanhamento da aprendizagem dos seus educandos e para a promoção de um seu verdadeiro sucesso educativo. No entanto, estas estratégias nem sempre se revelam completamente eficazes porque muitas vezes o seu raio de acção reduz-se aos limites físicos da escola, não conseguindo intervir no âmago dos problemas, ou seja, nos mecanismos de exclusão socio-económica e cultural que atingem os alunos a partir do seu ambiente familiar. E, quer queiramos quer não, a realidade é que a desigualdade gerada no exterior da Escola só parcialmente pode ser reduzida no seu interior.

Eulália Paulo

Paulo Guinote

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Não esqueçamos que estes equívocos têm um efeito de cascata. Um aspecto grave do clima beatífico de compreensão e laxismo na avaliação do desempenho dos alunos tem sido a sua transferência para a formação dos próprios futuros professores. Aqueles que hoje são alunos dos nossos “Cientistas da Educação”, e serão futuramente professores e para isso deveriam estar a ser convenientemente formados, são eles próprios objecto da aplicação destas teorias de desculpabilização generalizada e só a custo do seu brio pessoal e profissional conseguem, em alguns casos, ultrapassar esta teia. A teoria da reprodução de Bourdieu e Passeron anda por aqui, embora aplicada numa versão “mutante?, bem como a ideia de que a Escola é um “aparelho ideológico do Estado? (Althusser) também não está longe, só que agora ao serviço de outros senhores e de outros ideais.

Mas o efeito mais pernicioso deste ambiente de irresponsabilidade na Educação é certamente o seu alastramento à área disciplinar, alargando a compreensão pelo incumprimento das obrigações escolares dos alunos às próprias normas de conduta em comunidade. A partir do momento em que esta visão prevalecer, para além de não ser necessário desenvolver um esforço mínimo para obter sucesso não será igualmente necessário sequer respeitar o próximo.

“(…) é preciso dizer que, entre nós, a autoridade do professor, dentro e fora da aula, foi sistematicamente minada por decisões de sucessivos governos durante as últimas décadas. E recebeu com este regulamento [disciplinar] mais um golpe profundo. De acordo com a doutrina que o instituiu e que hoje é dominante na Educação, a indisciplina resolve-se pela mesma via que se procura «resolver» o insucesso escolar: baixando os níveis de exigência, camuflando os resultados, encobrindo o que está mal, varrendo os problemas para debaixo do tapete.? (Fernando Madrinha, Expresso, 5 de Fevereiro de 2000, pg 2)
 
O erro estará sempre, certamente, do lado do professor. Se a criança não se interessa pelo estudo, se adopta comportamento perturbadores, se demonstra atitudes de insubordinação constante, se agride verbal ou fisicamente colegas ou professores, o mal está sempre do outro lado – em quem lhe procura exigir um mínimo de trabalho e correcção. É certo que devem ser procuradas as causas desses comportamentos mas não parece correcto transferir as culpas para os professores. Entre outros problemas, isso apenas serve para agravar o sentimento de vulnerabilidade e insegurança pessoal dos docentes e a desagregação do pouco prestígio social que resta lhe resta enquanto classe.
 
“Nos tempos que correm, um professor sabe que, por muito alta que seja a sua qualificação profissional, por muito inatacável que seja a sua conduta, poderá acabar por ser culpabilizado pelos pais dos alunos e pelas autoridades académicas. Executa um trabalho difícil e necessário, fundamental mesmo, mas mal pago, mal considerado, que o esgota fisicamente e não lhe traz, na maior parte das vezes, qualquer compensação, agradecimento – ou sequer respeito.? (António Muñoz Molina, Visão, 17 a 23 de Fevereiro de 2000, 114)

O resultado desta pretensa democratização do sistema de ensino público será, a médio prazo, o inverso do que se diz pretender porque os pais que se preocuparem verdadeiramente com a qualidade da Educação dos seus filhos, e tiverem meios para isso, fugirão para as escolas de elite, acentuando clivagens que mais tarde se revelam, inapelavelmente, no acesso ao mercado de trabalho.

Não sei se somos filhos, netos ou sobrinhos de Rousseau; o que sei é que somos enteados dos anos 60 e de um espírito requentado de contestação libertária e igualitária (o celebrado “proibido proibir? de Maio de 68, já com mais de três décadas e a necessitar de revisão para os mais nostálgicos da sua adolescência) contra qualquer forma de disciplina e autoridade que já teve o seu tempo mas que, infelizmente, tem poiso na 5 de Outubro onde se tem vindo a enquistar com tenacidade. E, a propósito da influência do espírito de Rousseau na Educação, o mínimo que se pode dizer é que Rousseau era certamente boa pessoa e tinha boas intenções, mas dificilmente teria ideia do que seria uma escola dos subúrbios de uma grande urbe da sociedade industrializada do século XXI.

Alguém terá levado muito a sério, há quase um quarto de século, uma certa canção dos Pink Floyd. Afinal, o melhor é os professores deixarem os alunos em paz.

  

Referências

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Paulo Guinote (Fevereiro de 2000, mas ainda aqui tão perto)

O equívoco desta elite bem-pensante e orgulhosamente herdeira dos ideais utópicos do Iluminismo, na sua vertente mais irrealista, baseia-se na ideia de que todos os indivíduos têm capacidades inatas idênticas e que, perante situações semelhantes, conseguem obter resultados, no mínimo, aproximados. Como não será necessário repetir com muita insistência, esta é a ideia base de todos os totalitarismos igualitários que defendem a construção de uma massa de indivíduos de identidade descaracterizada a que alguns chamam, com orgulho, um “homem novo?.

“Do ideal liberal da igualdade perante a lei – um dos pilares do Estado de direito – e da máxima daí inferível de condições de competitividade justas, ou seja, iguais para todos partiu-se para uma totalização da igualdade de resultados dessa competitividade, em seguida para a igualdade de condições de vida e finalmente para o ideal, eu diria antes, para a utopia de um destino o mais possível igual. Como pano de fundo encontra-se muito arreigada a concepção do homem apenas como espécie.? (Popper em Popper e Lorenz 1990, 95) 

Não sei, contudo, se esta inclinação para a eliminação das especificidades individuais diferenciadoras é consciente ou explícita em boa parte dos nossos actuais cientistas da educação. Talvez o que muitos pretendam seja apenas dar um aval “científico? a uma estratégia política, fácil, de obtenção de sucesso educativo estatístico “para europeu ver? nos anuários da especialidade. E esta estratégia caracteriza-se pela admissão, apenas implícita, da incapacidade de possibilitar uma efectiva “igualdade de oportunidades? para todas as crianças que entram no sistema educativo.

“A escola não poderá, só por si, assumir a responsabilidade total da eliminação do problema do insucesso escolar; mas poderá, isso sim, encarregar-se de proporcionar a um número cada vez maior de jovens as condições que lhes permitam tomar uma parte activa na vida económica e cultural da União Europeia.? (AA.VV. 1995b, 103) 

Na verdade, a desigualdade no sistema educativo nasce na casa, e não na escola, de cada aluno e no contexto socio-económico familiar em que se desenvolve a sua vivência. Como as desigualdades sociais se agravam, cavando fossos que impedem uma substancial melhoria das condições de vida de boa parte da população e empurram muitas crianças e jovens para percursos de vida que, por necessidades materiais e outras contingências, não passam pela escola, é necessário decretar medidas de excepção para obter o sucesso. Como a avaliação dos alunos revela maus resultados, têm-se vindo a baixar os padrões exigidos para essa avaliação, não cuidando do essencial; num feliz paralelismo estabelecido por Jorge Manuel Baptista, é como se uma fábrica cujos produtos não passam nos controlos de qualidade, em vez de melhorar a qualidade da produção, se preocupasse apenas em alterar os sistemas de avaliação dessa qualidade; como se conclui “evidentemente, os seus produtos seriam exactamente os mesmos, apesar de lhe ser atribuído um grau de excelência inexistente.? (AA.VV. 1995a, 91)

Não devemos ter ilusões sobre a igualdade de capacidades de todos os indíviduos. Essa não é a realidade e não é necessariamente um mal. A diversidade é uma riqueza e um dos critérios de progresso, na Natureza e na própria Ciência. O que nós devemos disponibilizar a todas as gerações é uma igualdade de oportunidades que permita a cada um explorar as suas capacidades e encontrar o seu caminho. Isso não passa por “decretos de sucesso? mas pelo desenvolvimento económico do país e pela melhoria das condições concretas em que as crianças crescem e se formam. É certo que isso é bem mais difícil do que burocratizar o insucesso escolar, para o desencorajar. 

Em termos caricaturais, tudo isto é como pretender que, numa corrida de automóveis, todos cheguem próximos uns dos outros, mesmo se uns participam com um Minis dos anos 60 com os pneus furados e outros com Alfa-Romeos dos anos 80 ou Ferraris do último modelo.

O que se deve garantir é que todos partam do mesmo ponto com meios semelhantes. Depois, é óbvio que uns conduzirão melhor, outros pior e que nunca chegarão todos ao mesmo tempo. Claro que deve ser dada assistência aos que têm problemas, mas não parece correcto rebocar até à meta aqueles que levam a corrida toda a chocar contra os outros, quantas vezes propositadamente. 

 

(Continua…) 

Uma tendência desnecessariamente agressiva, quando não explicitamente ofensiva, dos defensores das orientações actualmente dominantes (pelo menos no plano das directrizes ministeriais) na área da Educação em Portugal (e não só) passa por qualificar como “retrógrados?, “tradicionalistas?, “conservadores?, “elitistas? ou, na versão mais recente, “antidemocráticos? todos os que não concordam com o abaixamento dos padrões de exigência no sistema de ensino quanto ao aproveitamento e comportamento dos alunos e que reclamam critérios mínimos de qualidade para a definição de um verdadeiro “sucesso educativo?.

Infelizmente o exemplo vem de cima e de fora, o que parece legitimar a arrogância. Um ex-director do Departamento Internacional da Educação da UNESCO, apesar da lucidez com que analisa outras questões, considera correcto (embora admita como redutor) classificar como “antidemocráticas? as tendências que defendem mecanismos de ajustamento entre quantidade e qualidade, recorrendo a modelos de selecção, opondo-as às “democráticas? que teriam o exclusivo da defesa da universalização do acesso ao conhecimento (Tedesco 1999, 54). Esta perspectiva é profundamente abusiva, utiliza os conceitos de “democracia? e “(anti)democrático? de forma pouco rigorosa e parece confundir democratização do ensino com ausência de critérios de selecção o que é evidentemente incorrecto.

No nº 2 do artigo 2º da Lei de Bases do Sistema Educativo lê-se que “é da especial responsabilidade do Estado promover a democratização do ensino, garantindo o direito a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades no acesso e sucesso escolares?, ou seja que todos os indivíduos têm direito a um serviço/bem, que se quer facultado em igualdade de oportunidades. Mesmo se era essa a intenção do legislador, não está lá a obrigatoriedade do sucesso educativo, a todo o custo. Esse tem sido o objectivo de um continuado esforço legislativo e burocrático dirigido directamente contra o trabalho (e consciência) dos professores e indirectamente contra a qualidade efectiva do ensino provocando efeitos que, de quando em vez, afloram sempre que se fazem estudos internacionais comparativos quanto ao desempenho dos alunos em diversas matérias nucleares, nomeadamente quando ao domínio da língua materna e das ciências exactas. A iliteracia e/ou o analfabetismo funcional é evidente, assim como a completa inaptidão para realizar operações de raciocínio lógico ou de cálculo elementares, mesmo quando não é medida “cientificamente?.

O “direito ao sucesso? (AA.VV 1992b), lugar-comum que de forma tão rápida e oportunista foi adoptado por alguns, metamorfoseou-se de maneira ainda mais célere na “obrigação do sucesso?, transferindo o ónus do insucesso dos alunos para os professores. Fazendo, por um mecanismo subtilmente perverso, dos resultados da avaliação um reflexo do trabalho dos docentes, mais do que culpabilizá-los pelo fraco aproveitamento dos seus alunos, tentou-se condicioná-los e complexá-los na sua prática e autonomia pedagógicas. Com o pretexto de tornar solidários os Conselhos de Turma pelas avaliação feita em todas as disciplinas, tentou-se que ao corresponsabilizar todos pela avaliação feita por cada um se criassem mecanismos suplementares de coacção sobre as decisões individuais.

O resultado não se fez esperar, “a aplicação do novo modelo de avaliação provocou (pelo menos em alguns casos) um desvirtuamento radical dos objectivos mais importantes que lhe estavam subjacentes (…). De facto, não se pretenderia, numa perspectiva democrática e no contexto de uma política de igualdade de oportunidades, que os alunos fossem promovidos sem ter aprendido os conhecimentos propostos para este nível de ensino? (Almerindo Afonso citando-se a si próprio em Afonso 1999, 57). O mesmo autor afirma que, de acordo com o Despacho Normativo nº 98-A/92, era possível “que os alunos pudessem ser retidos em qualquer ano de escolaridade – não se consagrando, portanto, qualquer modelo de passagem automática? mas talvez se esqueça das condições concretas da implementação do novo regime de avaliação e das indicações mais directas dadas aos docentes que desencorajavam de forma bem explicíta qualquer recurso à retenção, reforçando a indicação que tinha “sempre carácter excepcional? (parágrafo 55 do referido despacho). Esquece-se ainda do opúsculo Avaliar é Aprender que foi distribuído generosamente pelas escolas no início do ano lectivo de 1992/1993 esclarecendo os docentes sobre “a Avaliação Sumativa e o carácter excepcional da Retenção? (AA.VV. 1992a, 18).

A facção que actualmente ainda é dominante na definição das políticas educativas portuguesas, cuja expressão maior se encontra neste regime de avaliação (o citado Despacho Normativo nº 98-A/92, apenas em parte revisto para o 3º ciclo pelo despacho nº 644-A/94) e nas normas disciplinares em vigor (que ocupam parte do decreto-lei nº 270/98), padece de um equívoco nas suas concepções que tem vindo a arrastar o nosso sistema educativo, em particular o ensino oficial, para um caminho perigoso e de difícil retorno. Em nome de lugares-comuns de uso fácil e aparentemente validados por boas intenções e valores politicamente correctos como a “democratização do ensino?, têm confundido sistematicamente aquilo que se deve entender por igualdade na área da Educação. Ou seja, espero que involuntariamente, têm substituído a ideia essencial de “igualdade de oportunidades? por uma duvidosa obrigatoriedade de “igualdade de sucesso?, obtida a todo o custo se necessário por via administrativa e que agora volta a atacar em força, pois volta a pairar a ameaça de só serem possíveis retenções em finais de ciclo. Vejam-se as notícias inseridas na imprensa dos inícios deste ano, com notícias dramáticas sobre os níveis de insucesso e abandono escolares (Diário de Notícias, 10 de Janeiro de 2000, capa e pp 24-25), a preparar o avanço para novas medidas de combate ao insucesso por via administrativa (Idem, 3 de Fevereiro de 2000, capa e pp 22).

(Continua.. com a bibliografia e tudo)
 

1.2 – As diferentes dimensões da democratização do ensino

A ideia de democratização do/no sistema de ensino não é unidimensional e assume, não só para mim, pelos menos duas vertentes essenciais:

  • Em primeiro lugar, a democratização do acesso ao sistema de ensino para a globalidade dos indivíduos, numa situação de teórica igualdade de oportunidades, independentemente da sua origem étnica, cultural, socio-económica ou sexual. Na versão mais avançada esta perspectiva postula que a igualdade oportunidades não é suficiente, devendo ser também garantido o direito ao sucesso escolar (Ambrósio 1981, 576-578).
  • Em segundo, a democratização dos processos de funcionamento desse mesmo sistema de ensino, tanto no plano da tomada de decisões, como nos do exercício do poder e do relacionamento entre os vários agentes envolvidos (simplificando, entre Ministério e Escolas, entre órgãos de gestão, professores, alunos e funcionários e entre professores e alunos).

No primeiro caso, temos o esforço mais ou menos contínuo para a construção  de um sistema de ensino universal, acessível a todos e não discriminatório, enquanto no segundo temos uma tentativa para transferir os mecanismos do sistema democrático do nível macro-político da organização do Estado para o patamar micro-político da organização interna das Escolas (e, em paralelo, para o do relacionamento entre os vários organismos ligados à Educação). Ambas as tendências, extremamente meritórias na ideia e no projecto, contêm, todavia, elementos potencialmente geradores de perversões na sua aplicação concreta, tema em que me deterei mais adiante, na sequência da análise dos textos seleccionados. Fiquemos, por agora, pela mera constatação que as duas vertentes identificadas do processo de democratização do sistema de ensino não estão necessariamente ligadas ou são completamente interdependentes, apesar da sua aparente relação ideológica, pois a primeira pode construir-se sem a segunda, assim como esta pode avançar sem implicar aquela. Com efeito, pode criar-se um sistema de ensino universal que não funcione internamente de forma completamente democrática (caso de regimes totalitários com objectivos igualitários mas com uma prática política centralista), assim como pode existir um sistema que funciona democraticamente mas que não é acessível a todos (o exemplo mais emblemático pode colher-se em Atenas, o berço da democracia ocidental mas que restringia bastante o direito de cidadania).

Em Portugal, como já atrás se referiu, a luta por um sistema de ensino “democrático? em relação ao acesso à Educação tem estado associado a um papel activo do Estado e do sector público nesta área, como instituição reguladora das desigualdades naturais na sociedade, e tem sido património ideológico das tendências políticas progressistas classificadas de “esquerda?, mesmo quando remontam (caso de Pombal, com as limitações já apontadas) a períodos anteriores à popularização deste conceito saído da Revolução Francesa. Este esforço democratizador foi vivido a espaços, em diferentes fases e com ritmos diversos desde, pelo menos, a primeira metade do século XIX. Após o investimento indispensável e possível em infraestruturas, assim como após a elaboração do necessário aparato legislativo, a democratização (quase) completa do acesso ao sistema de ensino tem vindo a ser conseguida, conseguindo-se atingir ao longo da década de 90 taxas de escolarização no primeiro ciclo a rondar os 100%.

Quanto à tentativa de inserir mecanismos de funcionamento democrático na Escola e na administração escolar, as preocupações são bastante mais recentes e surgem principalmente após a revolução de Abril de 1974, primeiro de forma voluntarista e pouco ordenada e depois de acordo com modelos importados do exterior (a este propósito Afonso 1994, 103-135 e Formosinho e Machado 1998). De acordo com as imposições legais da Lei de Bases do Sistema Educativo encontra-se actualmente em curso a implementação de um novo modelo de autonomia, administração e gestão escolar que, pelo menos no papel, corresponderá ao culminar deste processo tendente à completa democratização (que, para muitos, já existia nos principais aspectos) e descentralização do funcionamento do sistema educativo (para uma visão crítica do modelo em causa vejam-se os contributos incluídos no nº 50 da revista Noésis).

Encontramo-nos hoje, portanto, num momento crucial no processo de democratização da Escola. Alcançado o primeiro objectivo nos seus aspectos essenciais (democratização do acesso), partiu-se para o segundo (democratização do funcionamento).

1. A democratização do ensino em Portugal

“Os Portugueses vivem em permanente representação,
tão obsessivo é neles o sentimento de fragilidade íntima
inconsciente e a correspondente vontade de a compensar
com o desejo de fazer boa figura, a título pessoal ou colectivo.?
(Lourenço 1988, 76, itálicos do autor)
 
 
1.1 – A evolução histórica
 
Em Portugal, como em outros pontos do mundo, a luta no sentido da democratização do ensino, na acepção de liberalização do acesso à Educação para o maior número possível de indivíduos, antecede bastante o próprio conceito.

Se não nos detivermos aqui, por muito remotas para o que nos interessa, as lutas contra o exclusivo monástico do ensino na Idade Média, podemos datar da segunda metade do século XVIII e em particular da governação pombalina os primórdios das tentativas para a implementação de um sistema de ensino “público? em Portugal. Com Pombal, este esforço ainda está muito ligado à luta contra o monopólio clerical na Educação, em particular contra a posição dominante dos Jesuítas, e à defesa da laicização do ensino. A preocupação ainda está centrada em quem ensina e no que é ensinado, mais do que “a quem? é ensinado. O ensino continua explicitamente elitista e contrário a uma completa liberalização; no diploma que procede à reforma dos Estudos Menores excluem-se da sua frequência todos os indivíduos “que são necessariamente empregados nos serviços rústicos, e nas Artes Fabris, que ministram o sustento aos povos, e constituem os braços, e mãos do Corpo Político?, para quem bastavam as instruções dos respectivos párocos (Serrão 1981, 19). Com efeito, é errado procurar (e encontrar) em Pombal a semente de um sistema de ensino “público? democrático, no sentido corrente do termo, pois as suas intenções são diversas e estão ao serviço de uma modernização do ensino da aristocracia (Real Colégio dos Nobres) e da burguesia de negócios (Aula de Comércio) e contra o ensino tradicional dos Jesuítas, responsáveis por esse “escuro, e fastidioso Methodo, que introduzirão nas Escólas destes Reynos? (Appendix das Leys Extravagantes, 265.

O verdadeiro esforço pelo alargamento daquilo que podemos chamar “rede escolar pública? e pela verdadeira liberalização do acesso ao ensino desenvolve-se nos dois últimos séculos em torno de três momentos principais, directamente ligados a situações revolucionárias que provocaram profundas mudanças na organização política do país:

  • O período liberal pós-revolução de 1820, com especial incidência da acção reformadora de Passos Manuel.
  • O período republicano pós 5 de Outubro de 1910, na sequência da constitucionalização do ensino primário obrigatório e gratuito.
  • O período democrático pós 25 de Abril de 1974, em que a relação entre democratização política e democratização do ensino tem vindo a ser, por fim, concretizada na sua acepção mais ampla.

Em todos estes momentos a defesa do alargamento do direito à educação surge previamente associada a lutas políticas e é considerada como condição essencial para a democratização (usando-se ou não este termo específico) da vida política. Primeiro com a promoção do ideário liberal contra o absolutismo, depois com a defesa do republicanismo contra a Monarquia e, por fim, com a afirmação do regime democrático em substituição do autoritarismo salazarista. Também em todos estes momentos a questão educativa encontrou uma formulação específica na ordem constitucional.

Na Constituição de 1822, as questões educativas surgem, embora apenas no parágrafo 237 (em 240) do título IV dedicado aos “estabelecimentos de instrucção publica e de caridade?. Afirma-se aí que “em todos os logares do reino, onde convier, haverá escolas sufficientemente dotadas, em que se ensine a mocidade Portuguesa de ambos os sexos a ler, escrever, e contar, e o catecismo das obrigações religiosas e civis? (Constituições Portuguesas, 97). Nos documentos constitucionais seguintes, estas questões são abordadas de forma mais sumária, embora surja pela primeira vez com dignidade constitucional a gratuitidade da frequência do ensino primário: a Carta Constitucional de 1826 (parágrafo 30 do artigo 145) limita-se a afirmar que “a instrucção primaria, é gratuita a todos os Cidadãos? (Idem, 149), enquanto na Constituição de 1838 se afirma, nos artigos 28 e 29, que é garantida “a instrucção primaria é gratuita? e que “o ensino público é livre a todos os Cidadãos, com tanto que respondam, na conformidade da lei, pelo abuso deste direito? (Idem, 162).

Na Constituição de 1911 a educação entra no título II “dos direitos e garantias individuaes? e pela primeira vez afirma-se no segundo parágrafo do artigo 3º que “o ensino primario elementar será obrigatorio e gratuito? (Idem, 196). A implementação da obrigatoriedade da frequência escolar (que já existia desde a reforma educativa de Hintze Ribeiro de 1901 para os três primeiros anos) deparará, contudo, com importantes obstáculos materiais (rede escolar insuficiente, apesar do fomento republicano dado às Escolas Móveis, e progressiva degradação do poder de compra do professorado) e culturais (grande número de crianças, em especial raparigas, continua a não frequentar a Escola apesar dos esforços do recenseamento escolar).

Em 1933, a ordem constitucional do Estado Novo introduz algumas alterações neste plano. É garantida a liberdade de ensino (parágrafo 5º do artigo 8º) e mantém-se a sua obrigatoriedade (artigo 42º e parágrafo 1º do artigo 43º), mas desaparece da letra da lei a sua gratuidade. A responsabilidade pelo ensino primário elementar é atribuída “à família e aos estabelecimentos oficiais ou particulares em cooperação com ela? (Idem, 252) e explicita-se a liberdade de “estabelecimento de escolas particulares paralelas à do Estado?. Se, na prática, se assitirá nas décadas seguintes a uma regressão conservadora no plano da função da Escola na sociedade, como garante e mecanismo destinado à reprodução da ordem política estabelecida, a Constituição salazarista é a mais liberal (até ao momento) no plano da iniciativa educativa, teoricamente aberta a vários modelos e esvaziando o papel dominante do Estado. 

Por fim, a Constituição democrática de 1976 começa por garantir a “liberdade de aprender e ensinar?, recusando ao Estado “o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas? (nºs 1 e 2 do artigo 43º) e continua afirmando que “todos têm direito à educação e à cultura?, garantindo que “o Estado promoverá a democratização da educação? (nºs 1 e 2 do artigo 73º), estando a seu cargo “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito? (Idem, 338).

Se procurarmos identificar claramente os momentos em que entraram no texto constitucional português os três conceitos-chave de uma Escola democrática, em que é garantido o livre acesso a todos os indivíduos (gratuitidade, obrigatoriedade e universalidade) encontramo-los na Carta Constitucional (a gratuitidade) – e não, curiosamente, na Constituição vintista -, na Constituição republicana (a obrigatoriedade) e na Constituição democrática (a universalidade, associada à ideia de democratização da educação).

Apesar do seu simbolismo, cada um destes marcos não corresponde a momentos de clara inflexão das tendências verificadas em indicadores ligados à educação como a dimensão da rede escolar, o número de docentes disponíveis, o número de alunos matriculados ou a taxa de analfabetismo. Não é este o lugar adequado para analisar extensivamente esta questão, pelo que remetemos para os números conhecidos e disponíveis em diversas obras, apenas realçando que os ganhos verificados na escolarização durante o período republicano prolongam um movimento ascendente anterior (cf. Marques 1991, 520) e que os progressos verificados nas taxas de escolarização dos alunos do ensino básico e secundário na segunda metade dos anos 70 também surgem na sequência de uma tendência com origem ainda nos anos 60 (Carreira 1996, 62-63).
 

Memórias da Primária

3.
Ao assistir recentemente aos debates sobre os problemas de que actualmente afectam a Educação e a classe docente, voltei a sentir a minha velha irritação com os consensualmente proclamados representantes dos professores (leia-se dirigentes sindicais da Fenprof e FNE) que, quando falam, parecem oscilar entre o monólogo incapaz de gerar alternativas à situação que criticam e a vergonha de assumirem a sua ruptura com o pântano a que chegámos.
No momento presente, a questão das aulas de substituição e do aumento da idade de aposentação, é apenas a cereja sobre o bolo da insatisfação de maioria dos docentes, em particular porque algumas das mais recentes medidas acabaram por atingir subgrupos ca classe docente que, até agora tinham estado protegidos das maiores turbulências do sistema.
Mas, em vez de capitalizarem o desagrado e exporem claramente que, para além de pedagogicamente muito contestáveis, as recentes medidas são materialmente lesivas dos interesses dos professores, os sindicalistas de serviço deixaram-se arrastar para a discussão da legitimidade ou bondade das malfadadas aulas ou “actividades? de substituição.
Quanto a mim, não tenho dúvidas. As aulas de substituição são uma medida que, como tantas outras, tanto pode correr mal como bem, dependendo isso da sua implementação e da mobilização dos agentes educativos para esse efeito. E isso depende do Ministério, mas não só, também depende da competência, verticalidade e transparência dos órgãos de gestão das escolas.
Mas na forma actual, a implementação foi mal concebida e a mobilização é quase nula.
Porquê ?
Porque estas aulas ou “actividades? foram pensadas sem atender a um acréscimo de custos e foram marteladas em cima dos horários já existentes dos professores, sendo por estes encaradas como um acréscimo do seu trabalho sem qualquer compensação. Perante a contestação, a Ministra optou por designar as aulas de substituição por “actividades?, assim justificando que não fossem pagas como aulas efectivas.E não me parece que essa tenha sido uma decisão muito inteligente ou simplesmente respeitadora das condições de trabalho de docentes que, em muitos casos, já leccionam aulas a 7, 8, 9 ou mesmo mais turmas (tendo a disciplina de História uma carga horária de 2 tempos semanais, façam-se as contas para atingir as 22 horas lectivas do horário oficial, mesmo reduzindo 2 horas para uma Direcção de Turma), sendo obrigados a acompanhar e avaliar o processo de ensino/aprendizagem de 150 a 250 alunos, com tudo o que isso acarreta (leccionar conteúdos, preparar e corrigir documentos  de avaliação, verificar os cadernos e material dos alunos, elaborar relatórios sobre os casos problemáticos, etc).
Aparentemente ninguém se lembrou que, há muito pouco tempo, quando as aulas passaram para blocos de 90 minutos e os tempos lectivos passaram de 50 para 45 minutos, o Ministério mandou repor esse diferencial de 5 minutos no horário dos docentes com dois tempos suplementares para actividades na Escola, as quais deviam ter sido agora aproveitadas para as tais “actividades? de substituição, em vez de se carregar o horário lectivo dos docentes com mais 4-5 tempos efectivamente lectivos, pois exigem o trabalho com uma turma completa de alunos durante esse tempo.
Só que nos debates feitos publicamente, os representantes dos professores optaram por discutir as iniciativas da Ministra no terreno neutro da sua validade pedagógica ou da sua aplicabilidade prática, ou seja no âmbito das “grandes ideias”, esquecendo que muito do que leva ao desânimo dos professores que conheço é o facto de o seu horário de trabalho ter sido aumentado em 20 a 25% sem qualquer compensação financeira.
Quer isto dizer que em vez de 22 horas efectivas de horário, passaram a trabalhar de 27 a 29 sem qualquer acréscimo salarial e, pelo contrário, se faltarem a uma dessas horas ela é-lhes descontada como se fosse uma das 22 da praxe.
O que é estranho, no mínimo, pois o valor de 1 de 28 horas não é o mesmo de 1 de 22. Mas, está bem, somos maus em Matemática.
Que um sindicato esqueça isto, com receio de ser visto como ligado a questões materiais, é mau, agora que nem sequer consiga formular este problema de uma forma perceptível ainda é pior.
É que, que se saiba, nenhuma classe profissional dependente do Estado viu o seu horário de trabalho aumentado (em cima da subida da idade de aposentação), sem qualquer contrapartida.E a verdade é essa: não me parece que os docentes coloquem em causa a existência de aulas de substituição se o sistema for bem organizado e planeado, desde que elas estejam contempladas no horário de trabalho previsto no respectivo Estatuto de Carreira, o que é perfeitamente irreal é que alguém tire um curso de Línguas ou de Biologia e só possa legalmente leccionar no seu grupo disciplinar, mas agora já possa desenvolver “actividades” de substituição de docentes de História ou Educação Visual ou mesmo ir fazer prolongamentos a Escolas Primárias e ao Pré-Escolar, como acontece por aí.
Eu sei que o representante dos pais (gostaria de saber se a Confap é como aqueles sindicatos tipo-cogumelo que se representam a si mesmos e mais meia dúzia de amigos) gosta muito de defender que os alunos devem ficar na Escola das 8 da manhã às 6 da tarde para os pais ficarem descansados (mas já está contra o aumento da carga horária semanal dos alunos), mas porventura esquecerá que os docentes também têm filhos e que em nenhuma outra classe profissional se permite a sarabanda que se aceita na Educação.
Ou alguém está ver um médico-cardiologista ir substituir um oftalmoilogista, quando este falta ?
Ou um funcionário das Finanças ir a correr substituir um funcionário judicial ?
Não, pois não ?
Mas a demagogia politicamente correcta da Ministra da Educação tem tido o beneplácito da imprensa, dos Miguéis Sousas Tavares deste mundo e ainda de umas proto-organizações elevadas ao estatuto de parceiro social, para apresentar os professores como responsáveis pelo insucesso escolar.
E isso é vergonhoso, pura e simplesmente.
Assim como é elementar a demonstração de que os 7 ou 9 milhões de pretensas faltas dos professores, que são horas de aulas não dadas e não faltas ou dias completos, dividindo pelo professores e de dias previstos de aulas (e mesmo esquecendo os feriados, faltas por atrasos na colocação de docentes no ano lectivo usado como amostra, ou para serviços como correcção de exames e provas de aferição que são tarefas que o próprio Ministro incumbe aos professores), se resume a que cada aluno, por semana, terá duas horas de “furo”.
Mas claro que para os sindicatos, também parece chegar a crítica à “falta de ética” do Ministério em revelar estas informações, faltando-lhes a máquina de calcular (embora se faça de cabeça ou com papel e lápis) para desmontar a falcatrua do estudo ministerial, ainda por cima feito como extrapolação de uma amostra cujos critérios se desconhecem.
Mas, infelizmente, nos tempos que correm, os professores tornaram-se uma face demasiado vulnerável e visível para arcar com as culpas de um sistema de ensino ineficaz, mas que o é não por falta de empenho dos professores, mas sim pela permanente instabilidade em que o sistema se encontra, objecto de constantes reformas, reformazinhas e reformas sobre reformas, emendas, acrescentos e enxertos, só compreensíveis pela absoluta incapacidade da tutela definir um rumo coerente para a área da Educação, sendo que esse rumo deve ser o do rigor, o da qualidade e o da dignificação do sistema público de ensino.
Porque, caso assim não seja, apenas se verificará o que já se vê: uma imensa pressão do sector privado para colher benesses número de do Estado, em virtude da debandada de muitos dos filhos das famílias que têm meios para evitar as consequências do desmoronamento da Educação pública.

Paulo Guinote

 

2.
Mas também fomos atingidos, e em grande força, pela doença do politicamente correcto que atacou grande parte da nossa sociedade e que leva à discussão dos assuntos “no plano das ideias?, pretensamente elevadas, recusando a concretização comezinha, para que se não “ridicularize a questão”, como se tornou habitual ouvir a governantes, com destaque para os da área da Educação.
Mas, o grande, enorme problema é que a vida das pessoas acontece na realidade do quotidiano e não nas nuvens etéreas das cabeças pensadoras que legislam a partir dos gabinetes ou das cabeças falantes e escrevinhadoras que nos servem em bandeja de prata numa comunicação social crescentemente acomodada. No caso da Educação, utilizando uma metáfora não particularmente brilhante, encontramo-nos num beco estreito, mal iluminado e apenas com um par de saídas possíveis, sendo que uma exigiria uma reavaliação de muito do que foi feito de errado nas últimas duas décadas (e a realidade existente prova à saciedade que os erros existiram) e o retorno a um ponto de partida, para daí se enveredar por outro caminho, enquanto a outra passa pela fuga em frente em que temos vindo a estar constantemente, reformando mal em cima de reformas elas próprias já mal aplicadas anteriormente.
Sejamos claros e concisos nas opções que devem estar sobre a mesa:
Ou queremos um sucesso educativo estatístico, mesmo que à custa de uma galopante iliteracia funcional, e então está certo continuar a soterrar em papelada a questão da avaliação dos alunos e a acusar os docentes de serem os culpados de não conseguirem encontrar a solução para o insucesso dos alunos, ou queremos uma sucesso educativo efectivo, só possível com o aumento do rigor, do esforço e do grau de exigência colocado a TODOS os agentes no processo educativo (alunos, docentes, famílias e poder político), recuperando a Escola como um local de trabalho e fruição e o Professor como alguém que não é um mero gatilho da aprendizagem mas um guia dessa aprendizagem, qualificado para o efeito e digno do respeito dos seus alunos, dos seus pares profissionais, das famílias e da sociedade.Mas para isso era necessário reformar a Educação a sério e não limitar a intervenção à cosmética legislativa do costume, calcada sobre as Escolas com recurso ao aparato dos despachos, circulares e outros documentos afins, destinados a explicar o que as leis mal concebidas, mal planeadas e mal redigidas não conseguem por si mesmas.
Mas para isso era indispensável repensar a Docência como categoria profissional que merece ser respeitada não apenas no plano teórico, mas essencialmente na prática. Só que para tal era indispensável tocar em muitos interesses instalados, desde as instituições que formam professores de aviário, com currículos desfasados da realidade aos órgãos de gestão das escolas que, para se perpetuarem nos cargos, se tornam meras correias de transmissão das directrizes superiores, sem capacidade de análise crítica, de resistência e de utilização das margens de manobra permitidas pelo Regime de Autonomia.
Mas para isso era necessário que se combinasse um sistema de recrutamento/colocação de professores que, respeitando critérios de justiça e equidade, permitisse a criação de corpos docentes coesos nas Escolas, sem que tal significasse apenas a institucionalização de redes clientelares nessas mesmas escolas. E era necessário que os quadros de pessoal estivessem adequados ás necessidades reais e não aos humores orçamentais do Poder Central ou às estratégias pouco claras dos poderes locais (leia-se Conselhos Executivos que manejam habilmente as aberturas de novas vagas e as requisições de docentes.).
Mas para isso era essencial  que os professores enquanto classe profissional, apesar da sua enorme dimensão, recuperassem um espírito de grupo que a deficiente acção dos sindicatos ajudou a corroer, com o seu divisionismo interno, a sua fragmentação em cliques com projectos estranhos à classe e com a perda de ligação das principais cúpulas aos problemas concretos de quem trabalha nas Escolas.
Porque a verdade é que, na quase certa impossibilidade de criação de uma Ordem dos Professores capaz de congregar a classe docente para a discussão dos assuntos da sua actividade que ultrapassam as meras e redutoras (embora importantes) questões laborais e/ou salariais, os Sindicatos deviam ter um papel mobilizador que não se limitasse às greves da praxe, não seguindo a reboque das circunstâncias e apenas reagindo às agendas ministeriais.
E, principalmente, os docentes deveriam poder olhar para os seus representantes sindicais e encontrar neles gente que tivesse contacto directo com a realidade e que, não caindo nas velhas tiradas trauliteiras, tipo cassete-sindical com 25 anos, tivesse coragem de não se intimidar perante o discurso do politicamente correcto da aliança de interesses entre o Ministério e as Associações de Pais.

 

1. 

A Educação torna-se, de forma cíclica, o assunto do dia e o campo onde os discursos politicamente correctos, populistas e demagógicos se entrincheiram para mais uma vez apresentarem á opinião pública, mais do argumentos, fórmulas mágicas para alcançar o sucesso.
A estratégia está longe de ser nova e, a avaliar pelos resultados que temos, deixa muito a desejar em termos de eficácia, pois continuamos à roda com o insucesso escolar e educativo mais elevado da Europa, seja ela toda, só a da União Europeia, apenas a do Sul ou seja qual for a divisão que fizermos.
Mas periodicamente lá vem uma investida, seja a propósito de algum relatório internacional, de uma qualquer iniciativa menos entorpecedora do poder executivo ou apenas por causa de uma greve dos professores mais visível do que as outras.
Os números andam por aí à solta, para serem agarrados por quem deles precisa, conforme as ocasiões, e justificam o alarme. Recentemente o Diário de Notícias titulava em parangonas que em 2001, 25% dos jovens dos 15 aos 24 anos não completaram o Ensino Básico e 44% não completaram o Secundário, sendo que 15-17000 todos os anos abandonam o sistema educativo sem a escolaridade obrigatória.
Só que os números são paradoxais, porque Portugal também é dos países em que existem mais licenciados sem emprego (já andam pelos 60.000, constituindo 15% dos desempregados) e cursos superiores sem alunos, pondo em risco o posto de trabalho de umas centenas de docentes do Ensino Superior.
Isto significa que temos um sistema educativo completamente distorcido e que foi sendo modelado por conveniências e agendas políticas (em especial no caso da explosão do Superior privado de final dos anos 80 e inícios de 90), mais do que por qualquer tipo de lógica ou de adequação ás necessidades internas.

Afirmou-se que a Educação é um Direito, o que é verdade e muito legítimo, mas ninguém se lembrou de acrescentar que não temos um país preparado para absorver uma mão de obra qualificada, em particular quando é qualificada em áreas que são baratas de criar em termos de Ensino Superior, mas sem canais de escoamento no mercado de trabalho.
Somos, a um tempo, um país com défice educativo e excesso de qualificações para o mercado de trabalho que temos.
Porquê ?

Porque o problema está, não na Escola, mas no modelo de sociedade desenvolvida e periférica que continuamos a ter, vivendo de aparências e miséria ou melhor dizendo, de miseráveis aparências.
Provavelmente, a taxa de desemprego em jovens sem a escolaridade não andará muito longe da dos recém-licenciados pois o emprego precário, não fiscalizado, que aceita carne jovem desqualificada para part-times em grandes superfícies, na construção civil ou nos bate-chapas, em troca de pouco dinheiro, se mantém florescente.
Outro equívoco, é tentar fazer esquecer que o insucesso escolar começa fora da Escola, nos ambientes familiares economicamente vulneráveis e receptivos ao abandono escolar em troca de 40-50 contos mensais, escondidos ao Fisco e à Segurança Social.
Porque são muitas as famílias que sentem ser mais rentável (claro que numa perspectiva de curto prazo) o emprego precário do miúdo complicativo, sempre a querer ter os ténis da moda, do que a aposta numa escolaridade mais longa que, em boa verdade, também não garante entrada no mercado de trabalho.
Assim, torna-se quase mais racional deixar um filho ou filha sair do sistema educativo aos 16-17 anos com 2 ou 4 repetências para ir trabalhar (“o miúdo não tem jeito para a escola, o que ele precisa é de uma profissão”), do que esperar até aos 22, 23 ou 24 anos para tirar um curso, cujo resultado final é ser demasiado qualificado para os empregos disponíveis.
E a formação profissional que por aí tem andado, mesmo naquelas versões esquisitas arranjadas à pressa para dar um 9º ano de papel, também não conseguem resolver nada, porque tantas vezes são mais desenhadas a pensar nos interesses dos formadores amigos do que no futuro dos formandos.Mas, para o discurso político e principalmente para a acção política, reformar a sociedade e desenvolver a economia, por forma a reduzir as crescentes bolsas de exclusão social, é algo demasiado árduo e complicado.
É mais fácil burocratizar o insucesso escolar e mandar os professores passar os meninos e meninas à força, sem atender ao facto de continuarem iletrados nas áreas básicas do conhecimento, de maneira a ter estatísticas mais coadunáveis com um estatuto europeu.
O atraso educativo português é tema de debate há quase 200 anos, desde os alvores do regime liberal e sempre se tentou encontrar nele a razão do atraso económico.
Só que a relação é inversa: o atraso económico e a debilidade financeira das famílias é que sempre desencorajou um maior investimento na escolaridade, se outra razão não fosse válida, porque muitos percebem que também não é uma estadia mais longa no sistema educativo que dá uma garantia de sucesso.
Mas os esforços de Engenharia Social têm sido muitos ao longo das décadas, para ocultar a evidência de ser a Educação a chave para o nosso Progresso, mas de ser necessária uma Educação de qualidade, rigorosa e passível de ter tradução posterior num mercado de trabalho capaz de absorver a massa cinzenta produzida pela Universidades.
Ora, como as estatísticas quanto à fuga de cérebros demonstram, nós nem conseguimos agarrar muitos dos nossos (escassos pelos padrões ocidentais) melhores quadros superiores, como vamos querer fazer crer que estar mais tempo na Escola terá um retorno económico (porque isto da cultura não se come ao pequeno-almoço e muito menos à janta…) ?
Mas lá se vai empurrando a carroça, colocando-a à frente dos bois.
Milhentos Cursos Superiores a formar desempregados de luxo, condenados a aldrabar currículos para ter um lugar de caixa de supermercado ou de secretária de uma empresa.
E milhentos estratagemas para dar a escolaridade básica a quem não tem meios fora da Escola, para conseguir alcançar um verdadeiro sucesso escolar ou educativo.
E mais milhentos especialistas espalhados por gabinetes ministeriais, grupos de trabalho e comissões de estudo para analisarem a questão e darem a sua sagaz solução, resultado de muitas horas de comparação de números e leituras de relatórios nacionais e internacionais.
Mas tentar resolver o problema de uma sociedade crescentemente fracturada, com um crescente fosso de rendimentos e com uma obsessão pelo consumo instalada em todos os grupos sociais, isso não que dá demasiado trabalho.
A solução é a Educação, nem que seja à força, às cegas, pelo menos para cumprir metas estatísticas.
Mas para mais nada.
 

(Continuará…)