No Público vem hoje uma longa matéria sobre os famigerados planos de recuperação que agora enxameiam o quotidiano das escolas. Ao contrário do que ali se afirma, não é à aproximação do Carnaval que eles são feitos, já muitos o foram nas reuniões de avaliação do primeiro período, para não falar dos planos de acompanhamento que já transitam do ano anterior.
Vamos lá abrir o jogo quase todo de uma vez: os planos de recuperação são uma completa mistificação em muitos, demasiados, casos. Foram um dos diversos estratagemas que o ME criou para demonstrar o quando duvida do trabalho dos professores, em particular da avaliação que fazem dos alunos, e acabaram por tornar-se um instrumento defensivo de muitos desses professores, em especial Directores de Turma, para se resguardarem das investidas dos Encarregados de Educação.
Muitas vezes há um plano de recuperação apenas porque o aluno foi proposto para apoio pedagógico acrescido numa disciplina, pois o docente em causa deu-lhe uma classificação de dois e acha mais seguro propor o apoio, fazer-se um planozinho para inglês ver e garantir-se um meio de defesa caso a negativa se mantenha no final do ano.
Fosse eu abrir completamente o jogo e diria que 80% dos planos são uma imensa treta, mera formalidade para o ME pressionar os professores (dás uma negativa??? ora toma lá mais um monte de papelada para fazeres!!!) e estes para se defenderem (pelo sim, pelo não, mais vale fazer o papel, não venha por aí um recurso o queixa mais azeda…).
Abrisse eu mesmo o jogo todo e diria que em 80% dos casos (ok, podem ser apenas 70% o chegar aos 85%), a escola e os professores não têm meios aos seu dispor para resolver os problemas detectados, caso os planos de recuperação fossem feitos como deve ser e para levar a sério: ou seja, se contemplassem aquilo que é mesmo necessário para que o aluno tenha sucesso e que, na maior parte dos casos que conheço se pode resumir da seguinte forma:
- Despiste atempado de necessidades educativas, especiais ou outras, e existência de meios humanos especializados para resolver a situação.
- Maior envolvimento das famílias no acompanhamento dos alunos e dos seus trabalhos, não chegando dizer que não sabiam que o aluno tinha feito teste e tido negativa em cinco disciplinas (nem os sumários consultam nos cadernos diários???).
- Alteração da atitude dos alunos, precocemente convencidos pela ideologia do direito ao sucesso, em relação ao trabalho na sala de aula.
Atenção que não estou a retirar os professores da equação. Já acima escrevi que muitos planos resultam de estratégias defensivas de muitos docentes. Assim como não nego que nem sempre são apenas os alunos a necessitar de mudar de atitude. O que estou a dizer é que se os planos de recuperação fossem feitos a sério, existiriam muito menos, mas seriam para cumprir efectivamente.
Só que para isso seria necessário, desde logo, que as escolas dispusessem de pessoal técnico especializados para despistar ou tentar tratar de problemas que, na situação actual, ficam meses ou anos por sequer diagnosticar de forma competente.
Não chega ter um(a) ou dois(duas) docentes de Ensino Especial por Agrupamento com 1500 ou 2000 alunos. Ou ter um(a) psicólogo(a) escolar nas mesmas condições. Não chega ter de mendigar consultas especializadas nos Centros de Saúde ou esperar meses por um atendimento na área da pedo-psiquiatria. Não chega esperar que na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco atribuam um grau de prioridade elevado às situações que lhes vão chegando de novo. Não chega ter um(a) terapeuta da fala, algures, não sei onde, assoberbado(a) de solicitações. Não chega fazer papéis a relatar o que se passa e, ao não se conseguir que o mais importante se faça, se dê a classificação necessária para a criança ou jovem passar de ano porque, afinal, a culpa nem foi dele(a).
A verdade é que as escolas públicas portuguesas estão mal, muito mal, equipadas do ponto de vista dos recursos humanos para lidar com situações frequentes que um professor regular não tem ferramentas para resolver.
Mas depois dizem que há um ratio muito elevado de professores nas escolas em relação aos alunos.
Pois claro. Há professores a fazer um pouco de tudo e mais alguma coisa.
Já alguma vez compararam o ratio de outros técnicos especializados entre as escolas portuguesas e as escolas dos países onde se trata destas questões a sério?
Naquilo em que nós ganhamos, sem margem para dúvida, é na produção de planos, relatórios e demais papelada destinada a desculpabilizar tudo e todos por qualquer coisinha.
O ME proclama que manda fazer tudo e mais alguma coisa para defender o direito ao sucesso de todos os alunos. Os professores, ordeiramente, cumprem grande parte do que lhes é mandado e ainda se mostram mais pressurosos muitas vezes do que os próprios mandantes. E vai de produzir planos de rcuperação por tudo e nada.
Só para exemplificar: conheço o caso de uma turma que, em tempos recentes, apresentava no final do 2º período 14 planos de recuperação ou acompanhamento em 25 alunos. No ano lectivo anterior tinha sido, ex-aequo, a melhor turma da escola no seu ano de escolaridade. Desses 14 planos apenas resultou uma retenção, não porque os planos tenham sido cumpridos, mas porque em cerca de metade dos casos (ou mais) havia planos apenas para justificar a atribuição de aulas de apoio numa ou duas disciplinas ou solicitar o acompanhamento mais frequente dos encarregados de educação em coisas tão simples como verificar se os alnos traziam o material mais básico para as aulas (caderno, material de escrita, um ou outro manual).
Nos casos mesmo mais sérios, que acarretam uma intervenção mais urgente de alguém com competências específicas para apresentar soluções ao Conselho de Turma para trabalhar com os alunos, há que dizê-lo com frontalidade: em muitas escolas mais vale esperarem (alunos, famílias e professores) todos bem sentados e prepararmos (nós, professores) o três no final do ano, porque infelizmente as coisas são o que são.
É verdade que os níveis de insucesso ainda continuam a ser trágicos, como se escreve na notícia?
Talvez.
Estou é convicto que é um milagre que sejam só os que temos porque, em boa verdade, muito pouco é efectivamente feito para resolver os problemas detectados.
Nota final: Na peça identifica-se o 3º ciclo como aquele em que os planos de recuperação imperam. É apenas mais uma evidência a demonstrar que uma reorganização curricular e dos ciclos de escolaridade não deve ser ditada pelo achismo dos que consideram que a transição do 1º para o 2º CEB é que é traumática. De achismo estamos fartos e dos seus péssimos resultados ainda mais.