… e outros danos no mobiliário para afiar as unhas, que eu não gosto muito de manicure aos felinos.
Vem isto a propósito do valor que damos à vida, humana ou não, e da demagogia imensa em seu redor, seja dramatizando as tragédias, seja hiperbolizando os custos da vida dos cidadãos portugueses para o Estado, leia-se, para os senhores dos governos ocasionais, no presente o PM Pedro e o ministro da Saúde Paulo, que se apresentam ambos como pessoas de bem e o segundo, ao que consta, temente a Deus.
De acordo com o que se vai sabendo, a indústria farmacêutica – habituada a fazer cavalgar os lucros na miséria alheia (basta ler O Fiel Jardineiro do Le Carré para a ficção nos dar uma pálida imagem da realidade) – exige pelos tratamentos para a Hepatite C (assim como para outras doenças potencialmente letais) uma porrada de massa, alegando os investimentos na investigação e produção dos fármacos.
Vou passar adiante a evidência de que deveria ser função dos poderes públicos providenciarem muita dessa investigação.
Concentremo-nos no que é colocado cá fora para justificar práticas de avaliação do valor de uma vida:
Há aqui duas questões essenciais, penso eu, a destacar:
- A pornografia das margens de lucro da indústria farmacêutica e o seu vampirismo, só possível porque não há uma regulação transnacional (gostaram?) do seu mercado, em grande parte porque muita gente importante está no bolso e no rol de pagamentos às escondidas de muitas grandes empresas.
- A pornografia de se colocar a vida humana numa escala comparativa com o materialismo financeiro, em especial quando isso é feito pelos ocupantes transitórios do poder político como se fossem analistas de risco de uma seguradora a negociar apólices.
Comecemos pelo mais fundamental: a vida. O valor que há quem diga defender, desde que os encargos não atinjam os 5000 euros por mês, ou seja, o que é pago em migalhas a consultores jurídicos externos ou um décimo de um parecer encomendado para lixar os direitos laborais dos funcionários públicos.
Pagar 25.000 euros por seis meses de tratamento é algo incomportável para a larguíssima maioria da população portuguesa, mesmo que isso signifique a diferença entre vida e morte. Pelo que fica nas mãos do Estado para que esses cuidados de saúde lhe sejam prestados e a sua vida seja mantida.
No entanto, o “Estado” (que é uma entidade abstracta, sem actos concretos, pelo que devemos concentrar-nos nas pessoas reais que tomam decisões) considera que isso não é comportável e manipula números sobre pacientes potenciais a precisar de tratamento.
E há quem aplauda, como se fosse um executivo de uma seguradora de modelo americano, do género que mede o risco e decide que acima de 55 ou 60 anos só dá lucro fazer apólices contra o acne juvenil.
E é esta parte que arrepia, porque até se enquadra na lógica explicitada inicialmente pelo Relvas de que os portugueses, caso não se sintam bem, devem emigrar, sair da zona de conforto e ir, metafórica e literalmente, morrer longe.
A lógica que acha que os problemas na Saúde são por causa de enfermeiros e médicos. Na Educação por causa dos professores. Na Justiça por causa dos juízes e na Segurança Pública por causa dos polícias.
O problema de Portugal é ter cá portugueses. Que querem viver e não morrer, havendo hipóteses de sobreviver.
A quem desgosta imenso ter cá portugueses (e há dias que a mim também bate cá uma vontade de ver muitos pelas costas) é que deve ser indicado o voo mais próximo da Lufthansa ou da Air Malasia. E é algo que digo também a quem se queixa sempre de ser culpa dos portugueses votarem nos mesmos, serem burros, etc, etc, até dar a volta quase toda e acabar com esta coisa moralmente repugnante de avaliar a vida de outros, não a considerando o mesmo tipo de “direito adquirido” que o de uma empresa privada que sacou um contrato “blindado” com o Estado.
Voltando ao início, eu estou disposto a gastar 10.000 euros para ter um felino cá por casa a arranhar-me os móveis e a saltar por cima de tudo e mais alguma coisa, a roer-me a papelada e tudo o mais. Não sei se é racional. Mas é uma opção minha, avaliando como positivos os ganhos em relação à despesa.
No caso do actual PM Pedro e do seu ministro da Saúde Paulo não me parece que seja seu direito fazer cálculos desses e optar pela vida ou morte dos cidadãos portugueses, a menos que a dita pena tenha sido reinstituída.
A parte da obscenidade dos preços da indústria farmacêutica seria bem fácil de resolver se em Bruxelas e Estrasburgo não imperassem os eunucos políticos, salivando por uma avença.
Fevereiro 6, 2015 at 11:47 am
Texto para esfregar nas fuças do pedro e dos paúlos (o da saúde e o outro que é vice e se diz cristão). Parabéns por tê-lo escrito!
Fevereiro 6, 2015 at 11:50 am
É por estas e por outras que “eu sou grego”.
Fevereiro 6, 2015 at 11:55 am
Parabéns, Prof Paulo Guinote, pela lucidez, pelo raciocínio, pelos valores. às vezes sinto um enorme desconsolo por me achar sozinha a ter reflexões assim. A minha profissão é tratar doentes, salvar as vidas que posso e ajudar da maneira que consigo que não podem continuar a viver. E dói.me a alma quando ouço o ministro Paulo e o seu secretário de estado Leal da Costa a falarem, e arrepio.me quando o ministro primeiro acha por bem fazer faculdades de medicina privada como método de melhorar a saúde dos portugueses.
No meu dia a da começo a ouvir coisas como “sou velho mas gosto de viver, a gora não se podem tratar os velhos mas olhe que eu ainda gostava de me tratar”. E outras como esperar anos por consultas, não ver porque não se tem óculos (são caros e o SNS não paga), viver meses algaliado à espera de uma cirurgia fácil, etc, etc, etc, etc, etc…
A vida da sua gata é-lhe preciosa, como me é a do meu gato. A vida dos portugueses é posta na última prioridade dos dinheiros públicos já que é preciso salvar bancos e gastar dinheiro em obras para TGV que não vão existir, entre outras coisas. E depois dizer que os médicos são uns malandros prque ganham 15 ou 16 eur/h (brutos!) e não querem trabalhar 24 h seguidas nos cenários de guerra que são hoje as urgências, entre outras anormalidades.
Hajam pelo menos faróis que se vão acendendo no meio destes nevoeiros que são os discursos dos nossos políticos. Obrigada por ser um deles.
Fevereiro 6, 2015 at 11:56 am
MUITO BEM!!!
Fevereiro 6, 2015 at 12:16 pm
A realidade documentada ao vivo e a cores para além do que dizem os políticos.
http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/camas-hospitais/condicoes-indignas-nas-urgencias-dos-hospitais-publicos
Fevereiro 6, 2015 at 12:27 pm
Sem dúvida!
Um dos grandes problemas da sociedade é que quem exerce cargos de poder, considera-se tão poderoso que até pensa ter o poder de decidir sobre o direito à vida de cada um dos outros…
Chegámos a uma encruzilhada onde os governantes, eleitos democraticamente, se acham tão superiores aos que os elegeram, que se esqueceram de que a sua função é a de proteger os cidadãos e promover a melhoria das suas condições de vida.
Fevereiro 6, 2015 at 12:38 pm
Não gosto de falar do que não sei, mas no meio de algumas idiotices, por vezes (talvez poucas) ocorrem-me boas ideias.
Há alguns meses vários países europeus tentaram negociar com a farmacêutica uma redução do preço, sem sucesso.
Será que, uma coligação dos 30 países mais ricos do mundo, não conseguiria comprar a patente do medicamento, mesmo por uma grande pipa de massa e depois licenciarem a produção para venda a um preço baixo.
É uma questão de conhecer os números e fazer umas simples contas.
Penso eu.
Talvez ganhassem todos: a farmacêutica, os Estados e principalmente os doentes.
Fevereiro 6, 2015 at 12:39 pm
Será que ele acha que o irmão dele, deficiente, deve ser abatido a bem do país e da saúde económica do mesmo?
Fevereiro 6, 2015 at 12:40 pm
AS PRIORIDADES SÃO ESTAS!!!
PODEM GASTAR-SE 4,3MILHÕES COM AUDIS TOPO DE GAMA, MAS NÃO HAVIA HIPÓTESE DE TRATAR OS DOENTES COM HEPATITE C!!!
ESTADO VAI GASTAR 4,3 MILHÕES COM A FATURA DA SORTE!!!
Em 2014 o Estado gastou 2,4 milhões de euros com o sorteio semanal de automóveis Audi A4 e A6. Até ao final do primeiro trimestre de 2016 o valor máximo alocado a este concurso supera os 4 milhões de euros.
Segundo a portaria hoje publicada em Diário da República, esta é a despesa máxima autorizada à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) para a aquisição de “bens e serviços” e “dos prémios a atribuir”, no caso os veículos de marca Audi A4 e A6.
No ano passado o Estado adjudicou a compra 58 viaturas e gastou 2,4 milhões de euros para os concursos que se realizam semanalmente desde Abril de 2014 a Março deste ano.
http://economico.sapo.pt/noticias/estado-vai-gastar-mais-43-milhoes-de-euros-com-a-factura-da-sorte_211555.html
EU TENHO MUITA DIFICULDADE EM PERCEBER ESTA IDEOLOGIA!!! MUITA MESMO!!!
Fevereiro 6, 2015 at 2:23 pm
Subscrevo.
Fevereiro 6, 2015 at 2:37 pm
Muito Bem!
Fevereiro 6, 2015 at 2:54 pm
Ainda que a dureza das posições recentes na crise do euro não constitua novidade, a nova situação é um autêntico molho de bŕoculos. Olhando para a aspereza das afrimações, podemos concluir que os funcionários da União Monetária não estão relaxados quanto a uma possível saída do euro por parte da Grécia.. No entanto, quanto mais cederem ao Syriz, mais comprimetem os frágeis equilíbrios alcançados noutros lados. Isto irrita os governos do centro-direita da Espanha e de Portugal que insistiram junto dos seus eleitores que não havia alternativa à austeridade e às reformas; e assusta os partidos do centro-esquerda que receiam perder mais eleitores a favor de alternativas mais radicais. Alguns funcionários reconhecem mesmo que o dilema é insolúvel.
The Economist
Fevereiro 6, 2015 at 4:10 pm
Na base da discussão em torno do acesso ao tratamento da hepatite há uma questão essencial que tem sido pouco falada, e que é o reforço da protecção legal das patentes, eufemisticamente chamadas “direitos de propriedade intelectual”.
As patentes são actualmente um dos pilares do neoliberalismo e têm sido usadas nas últimas décadas para permitir lucros verdadeiramente obscenos às empresas multinacionais que a coberto delas instalam verdadeiros monopólios legalmente protegidos.
As patentes contribuem também para manter e reforçar a hegemonia dos países desenvolvidos sobre o Terceiro Mundo.
Quanto às “negociações” que alguns reclamam, o que faz sentido, perante problemas de saúde pública, é os Estados pura e simplesmente licenciarem o uso das patentes para obter os medicamentos rapidamente a custos módicos. Foi o que fizeram alguns países africanos perante o alastramento da SIDA e os custos proibitivos a que as multinacionais farmacêuticas queriam vender os seus produtos.
Fevereiro 6, 2015 at 4:46 pm
Equaciona de modo muito claro os termos da questão. Excelente! (… pese embora, o gato).
Fevereiro 6, 2015 at 5:31 pm
Na mouche !
Muito bem !
Fevereiro 6, 2015 at 7:14 pm
Excelente!
Fevereiro 6, 2015 at 7:18 pm
Doente que interrompeu Macedo recebe hoje medicamento contra hepatite C
José Carlos Saldanha vai ficar para a história como o homem que interrompeu o ministro da Saúde mas também porque conseguiu um acordo entre a tutela e o laboratório farmacêutico que fabrica o medicamento inovador para a hepatite C num processo que se arrastava há cerca de um ano na mais altas instâncias da saúde. José Carlos Saldanha garante que a intervenção no Parlamento não foi premeditada mas considera que fez diferença falar na primeira pessoa.
VALE A PENA VER A ENTREVISTA:
http://sicnoticias.sapo.pt/pais/2015-02-06-Doente-que-interrompeu-Macedo-recebe-hoje-medicamento-contra-hepatite-C-
Fevereiro 6, 2015 at 9:09 pm
Subscrevo o argumento de que a vida humana não tem preço (mesmo quando ele é esgrimido por defensores da IGV, a maior causa de morte no mundo). Mas alguns medicamentos têm preços absurdos (principalmente os que tratam as doenças “modernas”) concedendo às farmacêuticas margens de lucro obscenas.
Ou se consegue que todos os países revejam a legislação sobre patentes ou os governantes (e indirectamente os cidadãos) estarão sempre nas mãos das grandes multinacionais. [A título de exemplo, recordo que a Dupont quando terminavam os direitos de patente sobre os CFC’s e vários concorrentes se preparavam para os produzir a baixo custo, inventou o “buraco do ozono” e “fez aprovar” o Protocolo de Montreal obrigando o “mundo” a utilizar os HFC’s que entretanto patenteara.]
Os governantes têm de ter em conta o valor supremo da vida humana, mas devem evitar que os países que lideram sejam alvo fácil de chantagens inaceitáveis. [Ainda recentemente, o governo Japonês se recusou a pagar o resgate pedido pelo Estado Islâmico para libertar os cidadãos japoneses que detinha como reféns.]
O acordo conseguido pelo Ministro, Paulo Macedo, ainda que excelente para a farmacêutica (mais de 20 mil euros por cada doente efectivamente curado) e pesado para o SNS (deve aproximar-se dos cem milhões por ano) é bem menos gravoso que o inicialmente pretendido pela farmacêutica (42 mil euros por 3 meses de tratamento, independentemente dos resultados obtidos).
É bom não esquecer que o dinheiro do SNS é de todos nós e não é ilimitado.
Fevereiro 6, 2015 at 9:28 pm
Falou a mente brilhante que escalpelizou este assunto segundo os moldes de um.igv e um cfc.Deus iluminou—me o escalpe disse.
Fevereiro 6, 2015 at 10:33 pm
Homem com gata é uma coisa um bocado panasca.
Fevereiro 6, 2015 at 11:23 pm
Muito bom.
Fevereiro 7, 2015 at 1:37 am
#0
Deixo-lhe a sugestão de pesquisar valores de indemnizações por morte de homens de família em acidentes de viação, atribuídos por tribunais. Vai ficar surpreendido.
Fevereiro 7, 2015 at 9:09 am
Tribunais e seguradoras são vampiros no que toca à avaliaçao da vida humana.
Um ultralibrrral considera danos colaterais a pobreza de milhoes de pessoas.
Fevereiro 7, 2015 at 11:02 am
#22,
Conheço-os e não é por fazerem porcaria nos Tribunais que se justifica que se faça em outros lados.
Basta lembrar a tragédia dos hemodialisados de Évora…
Porque há quem não tenha memória, não quer dizer que eu não tenha.
#20,
Talvez… mas é mais grave quando a confusão com os “gostos” passa pela afirmação de uma macheza neandertal, ó rodriguinhos…