De como e por que é que a competência para a instrução dos processos disciplinares e de inquérito deve ser assumida em exclusivo pela IGE e portanto retirada à Direcção das Escolas
PARECER
Fundamentação – O Decreto-Lei nº 213/2006, de 27 de Outubro, o Decreto Regulamentar nº 81-B/2007, de 31 de Julho, a Portaria nº 827-F/2007, de 31 de Julho, a Portaria nº 827-G/2007, de 31 de Julho, o Decreto Regulamentar nº 16/2009, de 2 de Setembro, e o Decreto-Lei nº 170/2009, de 3 de Agosto. Reflexão global sobre as suas implicações na aplicação, nas unidades educativas, dos n.os 4, 5 e 6 do art.º 115º do Decreto-Lei n.º 15/2007, de 19 de Janeiro, à luz dos ensinamentos dos Professores Doutores Marcello Caetano, A. Castanheira Neves, Jorge de Figueiredo Dias, Diogo Freitas do Amaral e Mário Esteves de Oliveira.
1. O Decreto-Lei nº 213/2006, de 27 de Outubro, aprovou a Lei Orgânica do Ministério da Educação, elencando, nos seus artigos 4º e 5º, os serviços da administração directa (art.º 4, com remissão para os art.os 9º a 16º) e o organismo de administração indirecta do Estado (art.º 5, com remissão para o art.º 17º), dedicando todo o art.º 10º à missão e às atribuições da Inspecção-Geral da Educação, adiante designada IGE, serviço central deste Ministério.
2. Da análise dos artigos referido em 1., e da sua conjugação com o Decreto Regulamentar nº 81-B/2007, de 31 de Julho, nomeadamente o seu art.º 3º, é missão da IGE “assegurar o controlo, a auditoria e a fiscalização do funcionamento do sistema educativo (…) e assegurar o serviço jurídico-contencioso decorrente da prossecução da sua missão”, sendo que, de entre as diversas atribuições que lhe estão cometidas – e que respeitam o conteúdo funcional previsto no art.º 10º do Decreto-Lei nº 170/2009, de 3 de Agosto –, me permito destacar, porque especialmente pertinentes no âmbito desta reflexão, as atribuições de “assegurar a qualidade do sistema educativo (…) designadamente através de acções de controlo, acompanhamento e avaliação”, “zelar pela equidade do sistema educativo, salvaguardando os interesses legítimos de todos os que o integram e dos respectivos utentes”, “apreciar a conformidade legal e regulamentar dos actos dos serviços e organismos do ME (…)”, “controlar a aplicação eficaz, eficiente e económica dos dinheiros públicos nos termos da lei (…)”, “exercer o controlo técnico sobre todos os serviços e organismos do ME” e “propor medidas que visem a melhoria do sistema educativo” [nº 1 e al. a), b), d) e f) do nº 2 do art.º 10º do Decreto-Lei nº 213/2006, de 27 de Outubro; nº 1 e al. a), b), c), e), g) e h) do nº 2 do art.º 3º do Decreto Regulamentar nº 81-B/2007, de 31 de Julho; as Portarias nº 827-F/2007 e nº 827-G/2007, ambas de 31 de Julho, e o Decreto Regulamentar nº 16/2009, de 2 de Setembro, nada vieram acrescentar em matéria de interesse para a reflexão de que aqui me ocupo].
3. O nº 4 do artigo 115º do Decreto-Lei nº 15/2007, de 19 de Janeiro, veio atribuir aos Directores dos órgãos de administração e gestão das escolas a competência para a nomeação de instrutor em sede de processo disciplinar – instrutor este que é um docente da escola.
4. Um argumento utilizado pelos defensores da referida atribuição é o de que a transferência dessa competência se fundamentaria no princípio da proximidade, princípio que, para Diogo Freitas do Amaral[1], significa que “a Administração Pública deve ser estruturada de tal forma que os seus serviços se localizem o mais possível junto das populações que visam servir. É portanto uma directriz que obriga a, tanto quanto possível, instalar geograficamente os serviços públicos junto das populações a que eles se destinam. Deve entender-se, além disso, que a «aproximação» exigida pela Constituição não é apenas geográfica, mas psicológica e humana, no sentido de que os serviços devem multiplicar os contactos com as populações e ouvir os seus problemas, as suas propostas e as suas queixas, funcionando para atender às aspirações e necessidades dos administrados, e não para satisfazer os interesses ou os caprichos do poder político ou da burocracia.”. No mesmo sentido, vd Mário Esteves de Oliveira[2].
5. Este princípio, de inegável mais-valia no âmbito do direito administrativo, é absolutamente de evitar no âmbito do direito disciplinar, porquanto este, porque de natureza sancionatória, faz apelo subsidiário ao direito penal. Jorge de Figueiredo Dias[3] sustenta que “O direito disciplinar e as respectivas sanções conformam porventura o domínio que, de um ponto de vista teorético, mais se aproxima do direito penal e das penas criminais. (…) A essência do ilícito disciplinar e das medidas disciplinares encontra a sua justificação no especial significado e função que o serviço público – e nele (…) os funcionários públicos – assume nos quadros do Estado de Direito democrático. (…) Sem prejuízo de dever reconhecer-se que o direito disciplinar é, em maior medida que o direito penal, orientado para o agente, não pode esquecer-se que se trata aqui de direito sancionatório e que por isso uma consistente defesa dos direitos dos arguidos impõe que sejam respeitados (…) os princípios garantísticos que presidem ao direito penal.”.
6. Princípios garantísticos que, a par com o desenvolvimento das diligências típicas do procedimento disciplinar, exigem o devido distanciamento e uma não-familiaridade, seja positiva ou negativa, entre os diversos intervenientes no processo, pressupondo a existência de uma formação altamente qualificada.
7. Na verdade, no que respeita ao “distanciamento”, e tendo em atenção a situação de conflito que se instalou nas escolas como consequência das dificuldades acrescidas de progressão na carreira docente, num regime de quotação que estrangula o fluxo de docentes que pode legitimamente aspirar às mais altas classificações de desempenho, acompanhando Marcello Caetano[4], podemos dizer que “a carreira demorada com promoções espaçadas nem sempre favorecendo os melhores, a multiplicidade dos papéis e dos escritos, criam uma irritação permanente no espírito dos funcionários e favorecem o desenvolver de uma intriga enredadora (…) a que os superiores muitas vezes se não conseguem eximir. Um incidente insignificante assume proporções enormes: os ressentimentos e os despiques avultam-no desmesuradamente (…). histórias passadas ressurgem, remexem-se memórias mortas (…)”. O que pensaria este Professor da possibilidade de o instrutor de um qualquer processo disciplinar ser par do arguido e com ele concorrente a uma mesma quota de classificação! [E de que forma é que um qualquer docente – tendo em atenção o respeito devido pela Administração ao limite semanal do seu horário de trabalho – pode ser nomeado instrutor, cumprindo as funções lectivas e equivalentes consagradas no seu semanário-horário, e dar simultaneamente cumprimento ao nº 4 do art.º 42.º do “Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores Que Exercem Funções Públicas”, aprovado pela Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro, que estatui que “as funções de instrução preferem a quaisquer outras que o instrutor tenha a seu cargo, ficando exclusivamente adstrito àquelas”?].
8. Parafraseando A. Castanheira Neves[5], temos que resistir à tentação de reduzir o direito a um “regulatório prescritivo (…) consequencialmente «posterius» numa regressiva funcionalização ao próprio regulado e insistir em vê-lo como sentido axiológico-normativo, intencional e problematicamente autónomo e normativamente «a priori»”. Da pessoa em sentido axiológico decorre ser esta “sujeito de direito, de direitos e do direito”, pelo que “constitui a primeira das dimensões normativamente constitutivas do direito”. Mas o “universo jurídico estrutura-se não apenas por esta coordenada de normatividade, como também por uma outra, problemática, da realização”.
9. E, em matéria de instrução de processos disciplinares, não faz qualquer sentido estabelecer uma pretensa distinção apriorística entre processos “fáceis” – com isto pretendendo significar que poderiam ser instruídos no quadro da escola –, e processos “difíceis” – a serem necessariamente instruídos pelos Inspectores. É uma distinção que não faz qualquer sentido, quer apelemos às regras da experiência, quer aos ensinamentos da doutrina. Na verdade, e recordando palavras de A. Castanheira Neves[6], temos que recuar até ao positivismo, e às primeiras tentativas para o superar, para desconsiderarmos a dimensão problemática e não alcançarmos o sentido da validade normativa, reincidindo nos erros passados, “designadamente ao distinguir entre casos fáceis (lógico-dedutivamente resolúveis, através de subsunções) e casos difíceis”. A aplicação de um critério prático-jurídico “não é possível sem uma sua problematização não só em geral, como em concreto. (…) Há que (…) interrogar, para além do critério, pelos fundamentos normativos dele como eventual critério de responsabilidade e em referência às circunstâncias concretas do caso, e de cuja consideração conjunta e unitária dependerá o juízo de responsabilidade, com o sentido e os termos dela. (…) Ou seja, o acontecimento, o momento praxístico da acção numa certa situação, suscita a problematização do sentido da decisão (…) já que terá de perguntar-se ainda se verdadeiramente o seu significado é tão inequívoco e peremptório como em abstracto se supunha e não implicará isso uma recompreensão, uma reconstituição do próprio sentido normativo do critério em geral. Por outras palavras ainda, a “aplicação” decisória do critério, que parecia fácil, tornou-se problemática – volveu-se na situação num problema de responsabilidade e do seu exacto sentido, que a simples invocação do critério, não obstante a sua clareza e a sua suposta simplicidade, não resolve (…)- pelo que o caso que se diria “fácil” é afinal “difícil”. O que nos permite uma legítima e relevante generalização para uma conclusão capital: não há casos fáceis e casos difíceis, há simplesmente e sempre casos jurídicos. (…) E isto por implicação (…) do sentido do direito e da estrutura e exigência do seu universo normativo».
10. Qualquer processo, mesmo um dito “fácil” pode comportar gravosas consequências pessoais e profissionais para um arguido. “A descentralização e o reforço das autonomias não podem conduzir a que o Estado se demita do seu papel de regulador de conflitos e de garante da equidade no tratamento dos cidadãos. A Administração Pública tem de transmitir a todos a certeza de que actua no sentido da salvaguarda do interesse público, respeitando escrupulosamente os princípios da imparcialidade, da isenção, da equidade e da boa-fé” [do Parecer elaborado pelo SIEE para a AR, em sede de proposta de alteração do estatuto da carreira docente, oportunamente apresentada à respectiva Comissão de Educação].
11. Assim, a instrução dos processos disciplinares deve ser assumida em exclusivo por Inspectores da IGE, mediante solicitação a esta dirigida por parte da entidade instauradora do processo, o que obriga à revogação dos n.os 4 e 5 do artº 115º do Decreto-Lei nº 15/2007, de 19 de Janeiro, e à alteração do nº 6 do mesmo artigo, tornando imperativa a solicitação de um instrutor à respectiva Delegação Regional da IGE, proposta que cabe dentro das atribuições da IGE, conforme exposto no ponto 2. desta reflexão.
Pel’A Direcção do
Sindicato dos Inspectores da Educação e do Ensino
José Calçada
(Presidente)
Porto, Maio de 2011
[1] “Curso de Direito Administrativo – Vol. 1”, 2ª edição, Livraria Almedina, 2000, pág. 725 ss;
[2] Com Pedro C. Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, “Código do Procedimento Administrativo Comentado”, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 131 ss;
[3] Na sua obra “Direito Penal – Parte Geral: Questões fundamentais. A doutrina geral do crime.”, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 168 ss;
[4] Na sua obra “Do poder disciplinar no direito administrativo português”, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1932, pág. 153;
[5] No seu texto “Pensar o Direito num Tempo de Perplexidade”;
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