Em 1973, em grosso volume publicado pelo Ministério da Educação Nacional, seria feita a retrospectiva de todo o processo relativo á reforma educativa de Veiga Simão, incluindo o parecer da Câmara Corporativa e os debates ocorridos na Assembleia Nacional, bem como a fundamentação do próprio projecto onde se alinham os objectivos de expansão (alargamento do sistema ao nível pré-escolar), individualização (permitindo oferecer a cada aluno da preparação mais adequada às suas características e qualidades) e diversificação (aumentando a variedade curricular ao nível do Ensino Secundário e Superior) como basilares[1].

A leitura do parecer produzido pela Câmara Corporativa, assim como das intervenções dos deputados na Assembleia Nacional, demonstra que a reforma proposta estava longe de ser pacificamente aceite por todos, pelo menos em alguns dos seus aspectos mais inovadores. Com a habitual aprovação na generalidade, a Câmara Corporativa alinha umas boas dezenas de propostas de alteração, mesmo se muitas seriam questões de pormenor. No entanto, e não de forma completamente surpreendente, a votação final das alterações  proposta de lei nº 25/X acabaria, sob sugestão do deputado Veiga de Macedo da Comissão Parlamentar de Educação, por ser feita com base no texto apresentado pela Câmara Corporativa e não no texto da própria proposta[2].

Nos debates, os elogios da praxe são numerosos, muitos deles verdadeiramente encomiásticos, mas notam-se diversas vozes discordantes, como a do deputado Moura Ramos que aborda a questão da “democratização do ensino” com não muito velada e acre ironia – «é concedida à democratização do ensino uma virtude e um prestígio que tocam as raias do maravilhoso»[3]– e se insurge abertamente contra os «doutrinadores do ensino e corifeus de certas ideologias mais ou menos disfarçadas, para quem a exploração do filão da sexualidade representa ponto importante em matéria educacional»[4]. Outros deputados destacariam antes a inconveniência de um sistema concebido como uniforme e, por isso mesmo, menos atento às diversas realidades locais, regionais e, em especial, ultramarinas. Mas tudo acabaria com a aprovação da legislação sem subversão de qualquer dos seus traços essenciais.

Apesar da perturbação introduzida na sua aplicação pela revolução de Abril de 1974, que torna impossível fazer um verdadeiro balanço dos seus efeitos e consequências a forma de Veiga Simão é encarada de forma quase consensual como uma iniciativa extremamente positiva e que, apesar de tudo, marcaria toda a evolução seguinte do sistema educativo nacional.

Num texto em que se adivinha algum desalinhamento em relação à reforma de Veiga Simão ou no mínimo às suas capacidades efectivas de implementação, Rui Grácio não deixa de identificar os principais vectores da iniciativa: apelo à participação da opinião pública, uma educação ao serviço do desenvolvimento, afirmação de uma democratização do ensino. Só que aponta em seguida as suas contradições ou, talvez melhor dizendo, as insuficiências do contexto político em que se desenrolava e que limitavam gravemente a concretização plena dos objectivos desejados:

«Provocar um consenso nacional pela participação, limitada no tempo e sujeita a restrições severíssimas, por vezes ao arrepio da vontade do ministro, vencer a batalha da educação, e a do desenvolvimento, quando a outra sorvia mais de 40 por cento das despesas públicas em “investimentos não-reprodutivos” (como eufemisticamente se escrevia para a censura deixar passar); democratizar o ensino num contexto em que se recusavam sequer as garantias mínimas da democracia política formal -, eis algumas das antinomias que faziam da concretização da ambiciosa reforma do ensino um problema similar da quadratura do círculo»[5].

Medina Carreira retoma igualmente esta visão[6], enquanto Rogério Fernandes prefere sublinhar que a legislação de Veiga Simão «foi inspirada pelo desígnio de levar tão longe quanto possível a aproximação das condições de aprendizagem dos alunos, independentemente da classe, etnia, sexo, região, ou seja a garantia da igualdade de oportunidades através da “escola única”»[7]. Stephen Stoer vai mais longe e considera que a reforma educativa de Veiga Simão «foi o indicador concreto do colapso da ideologia educacional dominante da era de Salazar» e que se tratou «do símbolo do desmoronamento da ideologia prevalecente, que abarcava num todo único o sistema de ensino, o sistema político e o aparelho de Estado»[8]; por sua vez, António Teodoro prefere adoptar uma postura meramente descritiva dos acontecimentos[9] e por recuperar a afirmação de Sérgio Grácio de que todo este período, que acaba por culminar na reforma de Veiga Simão, corresponde a uma fase de «procura optimista da educação»[10].

De algum modo todas estas perspectivas têm a sua fundamentação, apenas variando entre as perspectivas que sublinham o plano das intenções esboçadas e não concretizadas pela força das circunstâncias decorrente da mudança de regime e da suspensão da legislação menos de um ano depois de promulgada e as que se concentram nos constrangimentos que o regime ditatorial acabaria por colocar à sua implementação, caso a revolução não tivesse acontecido logo em Abril de 1974.

O próprio Veiga Simão em debate realizado já em 1979, por iniciativa da revista Raiz e Utopia, assumiria as insuficiências da sua acção, procurando explicar algumas das razões que tinham estado na base dessa situação e caracterizando o panorama que ele não tivera tempo para mudar:

«Fui ministro da Educação durante quatro anos, tenho consciência de que fiz pouco e de que deixei muitos problemas para resolver. O Ministério era uma estrutura dominada por uma burocracia paralisante. A escolaridade obrigatória era de seis anos mas os últimos dois anos nem sequer eram gratuitos, excepto para aqueles que se pretendia que abandonassem o ensino através de uma monstruosidade que se chama ensino primário complementar. O curso secundário era uma imagem da estratificação da sociedade portuguesa: uma escola técnica para os filhos dos operários, um ensino liceal para uma falsa aristocracia a cultivar um ensino pretensamente humanista. As universidades eram estações de serviço, eram e são universidades de professores a preparar e continuar um falso elitismo, a cultivar homens, não para resolver os problemas do desenvolvimento nacional ou regional, mas essencialmente para ocuparem lugares de prestígio na sociedade estratificada.»[11]

Paulo Guinote (c)


[1] Rita Pinto Leite, coord. (1973), A Reforma do Sistema Educativo. Lisboa: Ministério da Educação Nacional, pp. 14-16.

[2] Cf. idem, ibidem, p. 482.

[3] Ibidem, p. 252.

[4] Ibid., pp. 254-255.

[5] Rui Grácio (1981), “Perspectivas Futuras” in Silva e Tamen, coord. (1981), p. 666.

[6] Medina Carreira (1996), O Estado e a Educação. Lisboa: Cadernos do Público, p. 28.

[7] Rogério Fernandes (2003), “Tendências da política escolar e a Escola para Todos em Portugal na segunda metade do século XX” in Fernandes e Pintassilgo 82003), pp. 17-18.

[8] Stoer (1982), p. 28.

[9] Cf. Teodoro (2001), pp. 265-277.

[10] Grácio (1986), p. 126.

[11] Declarações incluídas na longa transcrição da mesa-redonda “Educar em Portugal” in Raíz e Utopia (21998), nº 9/10, p. 59.