Há vários aspectos que me espantam bastante no destaque dado ao «estudo» feito por dois investigadores do ISCTE sobre práticas de selecção no acesso à matrículas em escolas públicas, que teve o privilégio de os levar ao Parlamento.

Vejamos parte da notícia:

Os sociólogos João Sebastião e Pedro Abrantes, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), concluíram que, contra o que está inscrito na lei, muitas escolas “empurram” alunos com histórias de insucesso e origem social e cultural de um nível mais baixo para outras instituições de ensino, que acabam por ser consideradas mais problemáticas.

Há escolas que têm uma política sistemática de criar mecanismos selectivos voluntariamente, o que é anticonstitucional porque cria por outro lado escolas onde o insucesso é fortíssimo”, afirmou hoje na comissão parlamentar de educação o sociólogo João Sebastião.

Em duas das escolas que analisou, na periferia de Lisboa, João Sebastião verificou que os alunos se matricularam numa delas em Junho e quando chegaram a Setembro não tinham vagas tendo de recorrer a uma segunda opção.

“Enquanto a primeira tinha uma elevada percentagem de filhos de licenciados e melhores condições, a outra mais abaixo era feita de pavilhões com mais de trinta anos, onde não havia um filho de licenciado”, explicou.

Para esta segregação, além da escola, contribui ainda a pressão das famílias.”Cada pai procura o melhor para os seus filhos e acaba por pressionar a escola a afastar os alunos com piores resultados, não necessariamente porque procura desvantagem para os outros, mas porque quer o melhor para o seu”, disse, considerando que “as escolas têm de ser mais activas na gestão destas pressões”.

Como antigo aluno de turmas de fim de catálogo, só posso achar que estas práticas discriminatórias estão erradas.

Como professor, nunca de escolas de elite e raramente de turmas com esse tipo de constituição «privilegiada» também tenho as minhas reservas sobre tais práticas, que sei existirem.

No entanto este tipo de destaque dado a esta questão, apresentando-a como uma «má prática» por parte das escolas, choca frontalmente com o discurso do ME relativamente à autonomia de gestão das escolas, à liberdade de escolha das famílias e ao maior envolvimento da sociedade civil naquela gestão.

Porque este tipo de práticas mais não é do que a aplicação, antecipada, do que aí virá se o novo modelo de gestão escolar seguir em frente.

Vejamos porquê:

  • Se as escolas passarem a ter efectivamente poder e autonomia para desenvolverem um projecto educativo próprio, vocacionado para os resultados de sucesso, as práticas de selecção no acesso passarão a ser a regra e agravarão os fenómenos agora detectados. Porque essa será a consequência directa da concorrência entre estabelecimentos de ensino.
  • Se é para levar a sério a «liberdade de escolha das famílias» relativamente à matrícula dos seus educandos, as «pressões» que agora se detectam ainda se tornarão maiores para a delimitação de pólos de (pseudo) excelência e para espaços problemáticos de exclusão.
  • Por fim, se o futuro e putativo Conselho Geral se tornar o órgão do qual depende a Direcção Executiva da Escola e se a sua presidência ficar entregue à dita «sociedade civil», nomeadamente a autarquias e encarregados de educação, será fácil compreender que a tentação para condicionar as políticas de acesso às escolas cujas comunidades envolventes sintam a necessidade de isolar-se do exterior que encarem como ameaçador.

Portanto, considero muito estranho que os «estudos» destes investigadores (note-se que o sociólogo João Sebastião, nos intervalos do tempo usado no Observatório da Segurança etc e tal, conseguiu estudar duas escolas – e eu duvido que tenham sido seleccionadas por acaso, enquanto o seu colega se esforçou e conseguiu estudar cinco) mereçam tamanho destaque, a menos que seja como forma de desmascarar os efeitos perversos do que por aí virá se avançar o novo modelo de gestão preconizado pelo ME.

Porque é importante notar que estes «estudos», ao quererem ser muito politicamente correctos e denunciar as «más práticas» de algumas escolas públicas (as quais também considero erradas) mais não fazem do que antecipar o admirável mundo novo do ensino público se as políticas do ME continuarem a seguir no sentido actual, nomeadamente na via da «autonomia», da «liberdade de escolha» e da cultura do «sucesso».

Ou alguém duvida que vai ser isso que acontecerá?

E será que alguém acha que se essas práticas são «inconstitucionais» agora, deixarão de sê-lo no futuro anunciado a partir da 5 de Outubro?

Porque seria bom que as «famílias» e as suas organizações representativas aceites como parceiras pelo ME (e alguém acredita que as CONFAP’s são formadas por gente que não «pressiona»?) assumissem com clareza o que querem: uma teórica liberdade e autonomia das escolas com os necessários efeitos indesejados, ou uma regulação central que fiscalize a equidade do tratamento dispensado pela Escola Pública a todos os cidadãos.

Mesmo para acabar, eu recomendaria ainda, com a devida humildade, que os investigadores isctianos para a próxima se esforçassem um pouco mais e, sei lá, fossem ambiciosos e conseguissem fazer um estudo que fosse além da meia dúzia de exemplos próximos e cujos critérios de selecção fossem claramente explicitados.