Uma crítica, algo simples e muito paradoxal, que é feita a diversas observações que vou fazendo neste espaço – mas que também encontro feita a outro(a)s colegas – é a de que nos agarramos demasiado às nossas experiências, que olhamos demasiado para o nosso umbigo – caramba, se há coisa que é assumida no título deste blog é isso mesmo – e que perdemos um bocado a perspectiva do quadro mais geral, quasi-cósmico, do interesse geral, do bem da Nação e, resumindo, da salvação do planeta.
Eu até me apetecia discordar e apontar que as críticas, em outros casos, são exactamente as inversas, mas pensando bem decidi concordar, graças a um pretexto que me foi fornecido pelo DA ao facultar-nos num comentário o link para os quadros e o método de cálculo usado para a criação pelo ME do Conselho dos 60, verdadeiro areópago futuro da consultadoria ministerial para assuntos educativos.
A criação é coisa que já me fez sorrir o suficiente, não sei se pelo modelo “democrático” com que pretende ser apresentado pela tutela, se pela instrumentalização a que se vai prestar. Isto para não falar na forma perfeitamente incrível como destrata as regiões autónomas que, apesar de terem um estatuto especial, que eu saiba ainda são Portugal para quase todos nós, excepto porventura para o Jaime Ramos na Madeira, um ou outro reminiscente da FLA nos Açores e a Ministra da Educação.
De qualquer modo, desta vez o soriso alargou-se em riso ao verificar as contas do quadro do lado direito, pois a soma dos representantes distritais por número de alunos dá 48 e a dos representantes por escolas dá 14, mas parece que ninguém informou disso quem elaborou o quadro e decidiu que as somas eram 45 e 15. Se somarem os valores parciais para vários distritos (Braga, Lisboa, Setúbal, Viana do Castelo) também terão interessantes demonstrações do que é o horror à Aritmética na 5 de Outubro. E isto é um documento oficial colocado no site do ME. Nem quero ver os documentos preparatórios. Mas adiante… (cliquem no quadro e verifiquem o link enquanto a anedota não for corrigida).
Mas neste caso o que me interessam são mesmo os valores fornecidos sobre o número de alunos e a rede escolar em funcionamento (espero que estejam quase certos). Porque vivo e lecciono no distrito de Setúbal e porque, teorias filosófico-pedagógico-coiso à parte, é com esse mundo que lido. E não com outro. E porque, apesar de ser necessário olhar para a big picture, também é indispensável colocarmos os pés na terra e olharmos o mundo a partir do sítio onde estamos. Isto até tem um nome em Ciências Sociais a sério, chama-se standpoint theory, mas agora isso não me interessa nada.
O que interessa mesmo é que Setúbal é de longe o distrito onde a rede escolar está a rebentar mais pelas costuras e onde foi desenhada por alguém que estava distraído no dia em que se fizeram as projecções demográficas de crescimento. E as contas saíram, mais do que escassas, distorcidas e claramente erradas.
Sei que é uma média, mas a ordem de grandeza das diferenças não deixa de ser elucidativa: em Setúbal há 256 alunos por estabelecimento de ensino, valor que está bem à frente do relativo aos distritos de Lisboa (222) e Porto (186) e que quase ou mais do que duplica o dos restante distritos de Portugal Continental (e também das ilhas, por certo). E não se trata apenas do mítico interior desertificado. Faro, Coimbra, Aveiro, Braga são distritos fortemente urbanos e estão no litoral. E Setúbal ainda tem aquela parcela de planura alentejana de Alcácer a Santiago.
Se nos concentrarmos na Península de Setúbal, a média então sobe de maneira brutal. E é com isso que eu e muitos outros docentes lidamos. Com escolas a abarrotar, onde é melhor pensarmos duas vezes antes de comer uma omolete com dois vos antes de irmos para a escola, não vá o espaço faltar. Onde as salas para as actividades de enriquecimento, diversificação e fragmentação curricular e extra-curricular se inventam em espaços impossíveis, à custa de arrumações. Onde nos intervalos, as centenas de crianças e jovens se acotovelam a caminho do bar ou a tentarem-se abrigar em dia de chuva. Onde as turmas, excepção a zonas de TEIP, são de 25-28 no Básico e 30 e muitos no Secundário.
São as escolas que a Ministra e os seus secretários não visitam. Porquê? Não sei! Falta de acessibilidades talvez. A estas escolas é que se deviam fazer visitas de estudo.
Mas onde nós trabalhamos o melhor possível dia a dia. Onde não podemos derrubar paredes, quebrar grilhetas, abrir gaiolas e fazer aquelas poesias e floreados todos que os pseudo-gurus nacionais anunciam, porque se o fizermos cai tudo pela borda fora, como nos bons velhos gasalhados que eram feitos por fora das sobrecarregadas naus portuguesas de regresso da Índia, aquelas mesmas que inspiraram muitos dos relatos da História Trágico-Marítima.
Vivemos muito centrados na nossa experiência, nos nossos dramas quotidianos, no nosso mundinho pequenino e que alguns acham comezinho e insignificante. Imerecedor (o mundinho) e incapazes (os docentes) de uma atenção ou reflexão mais profunda por parte de quem sabe. De quem vê mais longe. De quem analisa e prospectiva.
Mas as coisas são o que são. E se não formos nós, com maior ou menor insistência, quem mais se preocupará com isso? Quem falará por nós? O Conselho dos 60?
Os Sousa Tavares, os Pachecos Pereiras, os Antónios Barretos, os Pulidos Valentes, as Filomenas Mónicas? Só em sonhos…
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Abril 27, 2007 at 10:28 pm
Sim, eles sabem, eles têm uma visão global da “coisa”. Nós não sabemos. Só temos uma visão daquele nosso cantinho e por isso julgamo-nos sempre prejudicados porque, ao não vermos tudo, nunca percebemos que há outros mais “pobrezinhos” do que nós. 😉 Para além do nosso cantinho, apenas conhecemos mais uns poucos de cantinhos, por onde passámos ao longo dos anos ( e dos quais não temos nenhuma reforma! Facto esse que ainda não percebi, porque eles de cada vez que “mudam de lugar ficam com uma reforma do anterior!) Eles estudaram (?!) e sabem como melhor administrar os cantinhos todos que nós não conhecemos. Eles são formados (!!!!)em engenharia, em sociologia no âmbito da gestão, em desenvolvimento curricular, entre outras formações afim, o que lhes dá o direito de nos considerarem ignorantes e de nos pôrem de parte por não percebermos da poda. Os nossos pequenos dramas não são nada na globalidade do que eles têm para (des)governar! E quem quer saber das experiências de cada um? Não interesssam… trazem vícios de forma intrínsecos. Não permitem ideias largas.
Que lhes interessa a eles os nossos pequenos espaços? Eles apenas têm gráficos e quadrículas onde os números cabem à vontade. E mais, conseguem movê-los de uma quadrícula para outra sem engarrafamentos, sem que se ouça um daqueles ais em que nós somos pródigos. Porque se hão-de preocupar com a realidade se no papel aquilo cabe tudo certinho no sítio em que querem que caiba?
Os números são tão simpáticos… a matemática é uma ciência exacta (de quem muito poucos gostam – eu por acaso gosto e muito, mas não para ser usada como substituta das interacções humanas) que dá sempre o resultado que lhe é pedido. É uma questão de controle das variáveis. E isso com as pessoas não dá… cada uma transporta em si tantas invariáveis!
Nós vivemos na “terra”, no entanto, para eles, não passamos de uma fotografia aérea. Fica tudo tão direito, tão certinho quando a imagem é vista “lá de cima”!
Quando estes srs se põem a falar (como, por ex, hoje na AR) só me vêm à cabeça estes versos de Bertolt Brecht:
Dificuldade de Governar
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.
2.
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3.
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4.
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?
Abril 27, 2007 at 10:35 pm
Desculpa o abuso do espaço, mas já agora, quando me lembro daquele poema, faço os possíveis por me lembrar deste a seguir para não me sentir muito “infeliz”:
O Vosso tanque General, é um carro forte
derruba uma floresta esmaga cem Homens,
Mas tem um defeito
– Precisa de um motorista
O vosso bombardeiro, general, é poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade
E transporta mais carga que um elefante
Mas tem um defeito
– Precisa de um piloto.
O homem, meu general, é muito útil:
Sabe voar, e sabe matar
Mas tem um defeito
– Sabe pensar
… do mesmo autor, claro!
Abril 27, 2007 at 11:17 pm
Parabéns Paulo pela reflexão oportuna, incisiva, pertinente e… incomodativa. Obrigado Maria Lisboa pelo comentário poético tão a propósito da reflexão do Paulo.
Deliciei-me e fiquei com mais vontade de dizer aos Generais e aos Ministros que temos: VÃO À BARDA MERDA.
Abril 28, 2007 at 12:00 am
Standpoint theory? Não acredito no que leio… Citar uma uma abordagem pós-moderna de análise intersubjectiva do discurso no Educação do meu umbigo? Tenha cuidado meu caro. Ainda acaba a escrever como o Boaventura Sousa Santos!
Abril 28, 2007 at 2:15 am
o número das escolas dá 14…
e o total é 61…
Que coisinha tão bem feita e com quanto cuidado…
São mesmo um primor.
Ainda aprendi também que 9+2=10.
Abril 28, 2007 at 8:35 am
PJ, parte da ironia ter-lhe-á escapado.
Porque no fundo eu apenas disse que aquilo que alguns criticam é uma teoria afamada e “de ponta”.
Por outro lado o conhecimento é sempre útil para sabermos do que gostamos e do que não gostamos. O que usar e o que não usar.
por obrigação da introdução teórica á minha tese tive de desmontar e remontar a chamada “feminist standpoint theory”, uma variação neo-marxista aplicada aos estudos feministas.
Gosto claramente de umas partes, exactamente as que mais claramente assumem a distorção do olhar.
E se quiser ainda sei citar e explicar mais uma dezena de teorias com as quais discordo.
O erro é recusar-se o que não se chega a entender.
Esse é o grande problema.
Abril 28, 2007 at 2:39 pm
[…] Retirado daqui. […]
Abril 28, 2007 at 11:03 pm
Lá me fez o Paulo ir ler o decreto regulamentar que cria esse fabuloso conselho de entretém. Os quadros incomodaram-me e fui tentar perceber aquele desajuste contabilístico.
Uma vez que querem 60 eleitos e a representação é de 75%para o número de alunos (45) e 25% para o número de escolas (15)são estes os números que aparecem no fim das colunas e que serviram para o cálculo. Os arredondamentos geram a discrepância. Em Lisboa, por exemplo, o 9 é arredondamento de 8.55 e o 2 é arredondamento de 1.63. E 8.55 + 1.63= 10.18, o que faz com que na coluna da direita apareça 10 e não 11 de 9+2.O somatório da coluna da direita – 61 é que vai obrigar a corrigir o decreto ou então defenestram um eleito logo na primeira sessão.
O facto dos cálculos serem entendíveis não melhora o essencial da obra. Este CE é um monte de poeira.