Não são poucas as vezes que me interrogo se muitas das atribulações por que temos passado nos últimos anos, enquanto docentes, se não ficarão a dever ao retorno de uma concepção da docência como uma espécie de semi-profissão, uma ocupação que, apesar das crescentes exigências de formação, é encarada pelos governantes como uma função de tipo generalista e com uma fraca identidade e coesão profissional.
O conceito de “semi-profissão” surgiu principalmente nos anos 50 e afirmou-se nos anos 60 no mundo anglo-saxónico, para designar profissões ocupadas principalmente por mulheres como a docência, a enfermagem, o serviço social e mesmo o ttrabalho em arquivos e bibliotecas, tendo a sua teorização ficado muito a dever ao hoje relativamente pouco conhecido sociólogo Amitai Etzioni na sua obra The Semi-Professions and their Organization (1969).
A ideia-base que se divulgou é que existia uma relação entre a feminização de certas ocupações, a sua proletarização em termos salariais, a sua desqualificação profissional e uma maior facilidade do seu controlo por parte do Estado. No caso da docência essa ideia aplicava-se com mais facilidade ao chamado ensino primário desde o início da sua feminização nos finais do século XIX e inícios do século XX, mas acabaria por estender-se a todos os níveis de ensino não-superior a partir de meados de Novecentos.
Para feministas como Sandra Acker (cf. Género y educación: Reflexiones sociológicas sobre mujeres, enseñanza y feminismo, Barcelona, 1995) esta seria a prova evidente de como o Estado e a própria sociedade desvalorizavam os papéis sociais e profissionais da mulher, ao tratarem as ocupações com maior peso feminino como se fossem profissões incompletas, mais dóceis e, portanto, passíveis de maiores atropelos ao seu estatuto simbólico e material.
A verdade é que, especialmente em países anglo-saxónicos, a docência na rede pública de ensino não-superior foi sofrendo uma permanente degradação das suas condições materiais, tendo perdido muito do seu antigo prestígio e acabando por também perder cada vez mais em termos materiais, acabando os professores do ensino público em países como os Estados Unidos ou mesmo a própria Inglaterra, por serem encarados como uma camada social em trajectória descendente, em conjunto com grande parte do funcionalismo público, a descolar da tradicional classe média formada pelas profissões com um “núcleo duro” como a medicina, a advocacia, a engenharia, a arquitectura, a economia e gestão e mesmo as recentes profissões ligadas às novas tecnologias.
Na Europa Continental essa evolução foi mais benigna e, no caso português, por se ter associado o Estado Novo à desvalorização e desvirtuação do papel dos docentes, encarados como necessários instrumentos de inculcação da ideologia salazarista, o período posterior ao 25 de Abril – de grande massificação do ensino e da própria docência, continuando uma tendência já vinda de trás – assistiu a uma reabilitação da docência, inclusivamente do grupo mais feminizado (Ensino primário), tendo-se investindo numa melhor qualidade da sua formação, principalmente desde os anos 80, e procurando-se compensar materialmente o longo período de estagnação do seu poder de compra (também em finais dos anos 80 e início dos anos 90, êm conjunto com a aprovação do ECD ainda em vigor).
Em Portugal, desta forma, a docência no ensino não-superior recuperou, embora se constate que muito fugazmente, alguma da sua autonomia e ganhou algum desafogo material. O problema foi que, pouco depois, esses ganhos foram “compensados” com alguns ataques à imagem pública do docente, quando o poder político optou, perante a permanência de indicadores estatísticos desfavoráveis na Educação, por culpabilizar preferencialmente a classe docente pelo insucesso escolar.
E boa parte dos anos 90, desde a subida de Couto dos Santos a Ministro da Educação, passou-se nesse trabalho de erosão sucessiva da imagem pública dos docentes, considerados responsáveis pelo insucesso, pelo abandono e mesmo pela indiciplina dos alunos, destacando-se neste aspecto a secretáriod e Estado Ana Benavente com a recuperação de teorias, mais ou menos avulsas, da pedagogia crítica (Paulo Freire, Peter MacLaren, etc) já abandonadas ou muito desacreditadas nos seus locais de origem ou então por cá aplicadas apenas de forma parcial, esquecendo toda a mensagem de autores como Michael Apple ou Henri Giroux sobre a necessidade de autonomia do trabalho docente e da importãncia da capacidade reflexiva e crítica dos próprios docentes em relação aos ditâmes uniformizadores e coercivos das políticas centrais.
E assim chegámos à situação em que estamos, em que, não por acaso, uma socióloga do trabalho (coadjuvada por um semi-sociólogo, pois é historiador na origem), recupera uma forma de discurso que, embora não explicitando claramente as suas dúvidas quanto à dignidade do estatuto profissional dos docentes (provavelmente até o considerará algo supérfluo), age como se os docentes fossem uma massa amorfa, passível de todo o tipo de desmandos da tutela, domesticável a bem ou a mal e, na prática, instituindo procedimentos que tenderão a desarticular por completo qualquer autonomia do trabalho docente ou a possibilidade de um exercício crítico da profissão.
Dirão os mais entusiastas desta política: os professores não passam de funcionário do Estado e a sua missão é implementar as políticas educativas delineadas pelo poder político e quem não se sentir bem pode procurar outro ambiente de trabalho.
Não contesto isso, limitando-me a registar apenas como esse também foi o registo usado pelo Estado Novo (desvalorização do estatuto, redução salarial) para reduzir a docência a um dos seus instrumentos ideológicos preferidos, só que agora sem sequer retribuir com aquela aura de espírito de missão e sacrifício pessoal de que o(a) professor(a) gozava no regime de Salazar.
E isto afirmo-o sem qualquer receio de ser acusado de demagogia, pois nem sequer sou um anacrónico neo-marxista seduzido pelas ideias do Althusser.
Nota final: Aliás, a separação da tutela sobre o Ensino Superior e o Não-Superior, bem como a margem de manobra do Ministro Mariano Gago em termos de verbas – em nome do apoio à Investigação e à Inovação – não deixa de também ser um sinal claro, mesmo se indirecto, de uma evidente subalternização da Educação Não-Superior.
Outubro 13, 2006 at 11:02 am
A política é useira em construir casas pelo telhado! Para quê? Para legitimar um tipo de político voluntarista [porque dá a sensação que não lhe resta alternativa a não ser acudir as catástrofes do desmoronamento] mas incompetente!… Formar cidadãos críticos capazes de “desconstruir” discursos demagógicos é uma tarefa cada vez mais difícil para os professores do ensino não-superior
Outubro 13, 2006 at 12:18 pm
A educação tem um papel fundamental na veiculação de valores e tanto pode conduzir ao aparecimento de tiranias pela ditadura como pode fazer desenvolver imperativos democráticos.
A política de globalização e de desregulamentação na qual assenta o neoliberalismo tem levado os governos à perda do poder. As crises financeiras têm ddado lugar às crises de legitimidade dos Estados que, por sua vez, dão oportunidade ao capital para fazer com que verdadeiras reformas nas políticas educativas e de segurança social retrocedam nas sociedades ocidentais.
Uma reforma útil traria conhecimentos que permitiriam a crítica da cultura dominante e meios para combater toda e qualquer forma de dominação, valores e práticas sociais que promovem a injustiça e a desigualdade.
Contudo, é fácil detectar que a Escola, enquanto um dos principais agentes de socialização, está a cumprir, e muito bem, o seu papel: só é possível levar o ser humano a alienar-se dos seus valores fundamentais e transformá-lo numa “coisa”, com baixo ou nenhum valor de troca, depois de ter sido destituído da capacidade de ter julgamento crítico.
Outubro 14, 2006 at 3:31 am
A tal socióloga do trabalho tem razão – pelo menos para mim, trazendo seu texto para o ponto de vista da situação educacional no Brasil. Os professores daqui são como cordeirinhos, querem distância do difícil “exercício crítico da profissão” e ignoram o significado de autonomia do e no trabalho. Uma vanguarda que ouse criticar a política neoliberal e seus efeitos na educação é extremamente mal vista, ignorada e até perseguida por aqui. Ou seja, a alcunha de PROFESSORZINHA(O) não incomoda quase ninguém.
Outubro 14, 2006 at 12:35 pm
Rodrigo, também por cá vigora a “lei dos cordeirinhos”! Apenas uma minoria, absolutamente exígua, desenvolveu, pelos seus próprios meios, a capacidade de ter uma visão mais abrangente e, consequentemente, um certo espírito crítico.
De resto, a esmagadora maioria dos professores só compreende as questões salariais que lhes afectam directamente o bolso e outras questiúnculas de somenos importância. Se isto não fosse verdade, há cerca de um ano teriam feito uma greve de peso ao serviço de exames e não se teriam amedrontado com ameaças estúpidas e ilegais. Agora, penso que já é tarde!
A imposição da falta de exigência no ensino é lei, porque Portugal, devido à sua exiguidade, só tem mão-de-obra barata e indiferenciada para oferecer ao grande capital… Parece um contra-senso, mas não é. Apesar de não haver concorrência perfeita (longe disso, existe, isso sim, a “cartelização”), a formação do preço ainda depende (e muito) das leis da procura e da oferta! A pobreza torna as pessoas submissas e subservientes: as obras (na construção civil), as fábricas, os campos e as lojas esperam pelos srs. doutores e engenheiros… Uma forma subtil e maquiavélica de supervalorizar o capital!
A estratificação social, a breve trecho, reduzir-se-á às classes sociais: os detentores do capital e os pobres espoliados vendedores da única riqueza que possuem – a força de trabalho!
“Conhecimento é poder”, como afirmou Francis Bacon; por isso, o grande capital envida todos os esforços para que tal não venha a suceder e se mantenha o lema vigente: “quem tem dinheiro manda”!
Novembro 17, 2006 at 1:30 am
Se até já Salazar tinha os professores debaixo dos seus pés, por isso, não admira que um governo de tendências neo-capitalistas selvagens faça o mesmo. Esta gente pensa que governar é oprimir em vez de cuidar do bem-estar de todos os cidadãos. Ora como o povo, em geral, é fácil de manobrar, é preciso calar aqueles que pensam: desvaloriza-se o estatuto dos professores, colocam-se estes perante o juízo envenenado das populações e cria-se um estado de sítio em que os professores acabam por ter medo uns dos outros e, nesta altura, já estão manietados debaixo dos pés do governo e de seus interesses nada democráticos.
O grande problema da Educação, em Portugal, é a falta de educação que foi copiada para a sociedade a partir do mau exemplo de governantes e políticos ao serviço do capitalismo e do seu partido político.
Assim, não há volta a dar à situação: os professores passam metade das aulas a tentar acalmar e interessar os alunos e os resultados são o que se vê nos exames.
Os alunos até têm razão: eles vêm pessoas com cursos superiores nas caixas de supermercados, na construção civil ou em qualquer outro emprego famigerado enquanto, ao lado, pessoas com poucos estudos têm bons empregos em Câmaras Municipais, são electricistas, canalizadores, construtores e têm uma vida desafogada, sem os problemas dos professores que apenas têm a culpa de fazerem o que os sucessivos governos e ministros da educação se lembram – para deixarem a sua marca.
Por tudo isto, para já, é perfeitamente compreensível o abandono escolar e a falta de disciplina dos alunos nas aulas. Querer responsabilizar os professores por isto e, pior ainda, querer avaliá-los em função do abandono e aproveitamento escolar é perverter e inverter toda a situação de uma forma macabra que só pode servir para manter todos debaixo de disciplina dictatorial pois, na verdade, os professores têm sido os únicos interessados na Educação enquanto que os governos apenas se interessam por reduzir despesa (para que em tempos difíceis nada falte à malta do partido) e em estatísticas para a CEE.
Junho 25, 2017 at 11:36 pm
Olá Guinote, preciso citá-lo me um trabalho acadêmico. Poderia me informar de qual cidade publica?
Julho 10, 2017 at 10:56 pm
Pode colocar Quinta do Anjo, Palmela.