graduate1.pngÉ um lugar comum, que nos últimos dias renovou popularidade, afirmar que Portugal é um país de senhores doutores ou de doutores & engenheiros, sendo isso resultado de uma forma de representação fantasiosa e auto-complacente de um povo caracterizado paradoxalmente (mas essa seria exactamente a explicação para o fascínio) pela escassa qualificação académica.

Esse tipo de discurso, tendo a sua óbvia razão de existir e raízes seculares, já sendo denunciada desde a segunda metade de Oitocentos, não deixa de de só dizer a verdade pela metade.

Porque se quisermos ser rigorosos essa forma de tratamento, e muito em especial quando não corresponde a uma realidade académica, é mais própria das elites do que da chamada arraia-miúda. Não confundamos os registos. A vidração pelos títulos e a ostentação dos diplomas não é característica da esmagadora maioria dos portugueses, mas sim do que passam por ser as elites dominantes, económicos, políticas e culturais.

E a coisa não melhorou anda nas últimas décadas, ao contrário do que se poderia pensar.

No meio onde cresci, durante muito tempo não havia doutores se excluirmos o médico da vila (o doutor Neves) e depois os do Centro de Saúde. Na escola aprendemos a chamar sêtor aos professores, mas isso não queria verdadeiramente dizer nada, porque em muitos casos o rapaz tinha 18 anos e tinha acabado o Propedêutico. Era algo coloquial, uma forma de não enveredar pelo mais formal senhor professor do antigamente. Ninguém ia à mercearia ou ao talho e tratava os donos por doutor. Nem pouco mais ou menos. Aliás, se era para ofender alguém nos anos 70 era chamar-lhe injustificadamente senhor doutor e ver como ficava logo a rabiar.

Quando nos querem fazer crer que os portugueses são um povo de exibicionistas e de vaidosos mal disfarçados, até podem ter razão, mas não pelo lado dos tratamentos de cerimónia. Esse é um pecadilho de alguns, exactamente daqueles que mais deveriam ter a noção das coisas, por se considerarem a nata acima da maralha. Porque o zé-povinho só se trata por doutor por puro gozo, como eu e os meus amigos fazíamos nos transportes públicos a caminho de Lisboa há 20 e mais anos, uns para a Universidade e os outros já para o trabalho.

E o facto de serem as elites quem mais recorre ao artifício e ao engano revela muito sobre a fragilidade da auto-imagem desses mesmos estrreitos grupos sociais que conseguiram dominar o poder (político ou económico) mais por factores circunstanciais, por encosto ao aparelho de Estado, do que por manifestas competências resultantes de diploma académico formal.

Qualquer empresário de sucesso se tornou automaticamente, a partir dos anos 80, “doutor”, mesmo que o não seja. Assim como qualquer construtor civil de obras públicas de largo orçamento foi promovido a “engenheiro”. E com os políticos a coisa foi pelo mesmo caminho. Se a primeira geração do pós-25 de Abril era formada por gente que, independentemente dos quadrantes, tinha o seu percurso pessoal, intelectual, profissional, político e/ou académico, as gerações seguintes já foram em muito formadas nas academias partidárias juvenis, em que o truque rasteiro e o malabarismo retórico se tornaram as armas essenciais para a progressão na carreira.

E quando lemos opinadores afamados, alguns que ainda estão entalados entre a a velha e a nova geração, criticar essa falha de carácter dos portugueses, causada pela sedução do canudo, será melhor desconfiarmos, desconfiarmos muito. Porque muitos deles são os primeiros a exibir a sua certificação perante quem não acham estar ao seu nível e a exigir tratamento deferencial.

Lembro-me, entre vários outros casos benignos dessa saloice fatal das elites, de um professor muito à esquerda, muito terra-à-terra, somos todos iguais, pessoa por estes tempos notabilíssima, a quem agradava imensa o tratamento por “tu” nos bares da Faculdade, mas que logo que obteve o grau, mandou colocar à porta do gabinete “Mestre Dr. Fulano de Tal” para risota geral de muitos de nós.

Porque, salvo raríssimas excepções, a ânsia pela exibição de sinais de diferenciação social, meramente simbólicos ou não, é algo que pode pulsar em todos nós, mas pulsa tanto mais quanto é a ambição de legitimar uma situação de privilégio e poder que nem sempre se tem a certeza de merecer.