Uma Educação pouco Especial
Dou aulas, com esta ou aquela intermitência, há mais de 25 anos. Nos últimos 12 com uma incidência particular em turmas dos velhos “currículos alternativos”, actualmente turmas de PCA, e apoio a alunos com necessidades educativas especiais. Não tenho especial formação para o efeito, sou um professor de modelo antigo, com uma licenciatura em História e profissionalização posterior em exercício, quando já tinha tempo de serviço suficiente para fazer apenas o ano das chamadas “teóricas”.
Em alguns anos a maior parte do meu horário foi ocupada desta forma, chegando mesmo a ser completamente preenchida com turmas PCA e apoio em Língua Portuguesa, agora Português, ou Iniciação à Informática a alunos com necessidades educativas especiais (NEE). Sou parte interessada, mas as coisas sempre correram razoavelmente bem no plano da relação pessoal e profissional com os alunos, mas nem sempre fiquei certo de ter tomado as melhores opções. Em muitos casos naveguei à vista, experimentando e tacteando, sem dominar conhecimentos teóricos que me pudessem orientar ou o domínio de técnicas que permitissem fazer melhor. Sempre senti a necessidade da existência nas escolas de equipas multidisciplinares que permitissem um verdadeiro trabalho aprofundado, sistemático e fundamentado, com a multiplicidade de situações com que os professores são confrontados e às quais devem saber responder de forma diversificada. Sempre senti que a abordagem “à descoberta” tem tantas vantagens quanto inconvenientes. E sempre achei que, indo para além da catalogação ou rotulagem, a intervenção de colegas especializados numa fase precoce do trajecto educativo dos alunos é essencial para o estabelecimento do que chamarei, como leigo, “diagnósticos de referência”, assim como um trabalho de continuidade é ainda mais indispensável nestes casos.
Pelo que me choca perceber que os governantes consideram que a inclusão de alunos com NEE em turmas regulares é algo de tipo meramente “administrativo” e que nesta área basta ter os professores colocados a 1 de Setembro ou umas semanas depois para tudo estar bem. Esquecendo-se que um ano lectivo só começa a 1 de Setembro, neste caso sim, do ponto de vista “administrativo”. A necessidade de caracterização dos alunos com NEE e do seu acompanhamento em continuidade, de maneira a ir registando a sua evolução não tem relação com calendários escolares na sua versão mais redutora É algo que necessita de um trabalho especial que não pode estar a ser abandonado e recomeçado de um ano para outro e que não assenta – ou não deveria assentar – apenas em relatórios escritos, mas em relações humanas e pedagógicas que se desenvolvem, ganhando a confiança dos alunos, a colaboração das famílias e o envolvimento dos restantes professores.
A publicação do decreto-lei 3/2008 de 7 de Janeiro representou uma oportunidade perdida na forma de encarar a questão dos alunos com necessidades educativas especiais pois, por entre um articulado cheio de procedimentos a seguir, se optou por considerar a Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde da O.M.S. como referencial único para a elaboração dos relatórios técnico-pedagógicos, o que limitou o alunos a enquadrar aos que fossem detentores de necessidades educativas de tipo “permanente”, o que foi factor de exclusão de muitos com problemas graves, só que tidos como “transitórios”.
Mas até essa forma redutora de encarar a problemática poderia ter sido ultrapassada se as escolas pudessem dispor dos meios humanos especializados (que vão para além dos professores de Educação Especial, na sua acepção curta, para efeitos de concurso de colocação pelo MEC) necessários e indispensáveis para dar apoio aos alunos que mais dele necessitam. E não tem sido esse o caso. É particularmente chocante verificar como no Orçamento para 2014 as verbas para a Educação Especial sofrem um corte dramático, curiosamente muito próximo ao acréscimo das verbas destinadas a financiar uma maior privatização da Educação, privatização essa que em regra se destina a favorecer grupos de alunos que já antes se encontravam numa situação privilegiada em relação à generalidade dos seus colegas.
Mesmo correndo o risco de ser acusado de demagogia, é inevitável verificar que cada vez mais se aposta numa Educação desigual, em que se apoia aqueles que menor necessidade têm à custa dos que mais necessitam. É verdade que o investimento exigido pelos alunos com necessidades educativas especiais é maior do que os alunos “regulares”. Mas esse é um daqueles encargos que devemos ter orgulho em suportar, porque significa um esforço de toda a sociedade para apoiar com qualidade os mais frágeis e vulneráveis. É triste e vergonhoso que exista que considere a questão apenas na perspectiva da “racionalidade económica”, dos rácios, dos custos médios por aluno. O que está em causa é o modelo de sociedade que se defende. E vai imperando um modelo de governação que, de forma clara e assumida, promove o favorecimento dos privilegiados à custa de todos os outros, com efeitos mais graves entre aqueles que menos meios de defesa têm.
Dezembro 24, 2013 at 4:17 pm
análise muito boa e muitíssimo real… muitas vezes este grupo de alunos, com problemas diversos, muitas vezes psico-sociais, mas sem estarem no ‘catálogo’ das NEE, no 1º ciclo que conheço têm apoios intermitentes, quando há alguém para dar ‘apoio’ , muitas vezes por colegas que tb têm problemas e por isso não têm turma… enfim, seria no 1º ciclo, o sítio certo para se fazer uma intervenção a sério, precoce e provavelmente mais eficaz. Mas, para além dos imensos relatórios e papi e grelhas e mais grelhas, quando vem algum ‘apoio’… é quase sempre remendo… a única coisa que se avançou a sério nesta matéria, foi na quantidade de burocracia… o professor titular de turma lá vai ‘desenrascando’ , muitas vezes a duras penas…
Dezembro 24, 2013 at 4:44 pm
Paulo Guinote toca num ponto essencial que deveria preocupar seriamente todos os que estão realmente empenhados em promover uma educação inclusiva: as equipas multidisciplinares.
Estas, ou não existem ou apenas são consideradas, de facto, administrativamente. E aí Crato tem razão.
Os técnicos especializados que trabalham nas escolas, quando existem, fazem-no geralmente à margem do programa educativo individual, com direito a uma nota de rodapé e, às vezes, a assinatura no mesmo.
Chegamos ao cúmulo de os responsáveis/coordenadores da Educação Especial excluírem os terapeutas e os psicólogos das reuniões de professores, “porque não vão lá fazer nada, basta os relatórios que elaboram”.
Sabemos que esta deriva está de acordo com a vontade do ME, porque permite relegar os apoios especializados para esquemas descartáveis, não assumindo assim nenhum compromisso para o futuro. Sendo uma questão administrativa e não curricular, a qualquer momento se dá um chuto nos apoios, nos terapeutas, e a equipa multidisciplinar era uma miragem.
Portanto acuso as Direcções dos Agrupamentos e também os professores (na sua maioria) por não estarem interessados em considerar os técnicos especializados enquanto colegas e parceiros da comunidade educativa, na educação dos alunos NEE, por os dispensarem de uma colaboração activa, e só estarem interessados nos relatórios e nas avaliações deles para completar a papelada e darem a impressão de que fazem tudo certinho.
Uma fraude e uma desilusão para quem acreditou na panaceia da escola inclusiva!
Dezembro 24, 2013 at 5:03 pm
Boa análise.
Concordo. Estávamos a fazer alguns progressos e retrocedemos, com base em critérios meramente economicistas. 😦
Dezembro 24, 2013 at 5:51 pm
#1
“imensos relatórios e papi e grelhas e mais grelhas”
É assim que vejo a educação especial atualmente, pelos alunos não se faz nada, só papeis, assim quando chegar a inspeção até parece que está tudo bem, e é isso que eles (ministério) querem, que pareça que está tudo bem, mas não está.
Por isso recusei-me a fazer “papeis” de adaptações seja do que for, para os NEE que tenho nas turmas, enquanto os alunos não tiverem um acompanhamento ou apoio como deve ser não faço nada.
Dezembro 24, 2013 at 6:21 pm
Caro Paulo, subscrevo!
Boas Festas!
Dezembro 25, 2013 at 9:20 pm
Uma Educação nada Especial, que funciona para os números. Há uns tempos atrás, aqui fiz referencia a alunos (NEE) que “desapareceram” das escolas, mas o caso está cada vez mais grave. Agora, um aluno NEE com uma hora de apoio por semana, já não conta para os dados dos que não têm apoio, pois efetivamente está a ter MAS é o mesmo que nada.
Ao país não basta subscrever, pomposamente Declarações ou intenções, é um imperativo ético cumprir o que se subscreveu, e de ética, com estes cavalheiros, estamos conversados.
Parabéns, mais uma vez, pelo texto.