Aviso desde já que não é um post sobre o amigo do mafarrico que aqui nos visita com regularidade.

E aviso que é um post com um certo ciúme social à mistura, porque perdi a fama da sonseria há muito, muito tempo, ali pelas saídas da adolescência, que o proveito nunca tive muito.

Este é um desabafo sobre o sonso enquanto criatura que povoa as nossas vidas e quotidianos, que se cruza connosco todos os dias, de sorriso afivelado e imbecilidade sempre pronta a arrepiar-nos.

É sobre os sonsos que, em quantidade variável, povoam uma sala de professores como povoavam em tempos a nossa sala de aula enquanto alunos, assim como povoam qualquer local de trabalho ou espaço social. Os sonsos estão omnipresentes na nossa vida.

O sonso é aquela criatura que nunca fez nada do que fez ou, em tendo feito e sendo possível prová-lo, fez sem intenção, pois nunca tinha pensado nisso e muito menos que o que fez, faz ou fará, pode ter consequências, chatear, ofender, ser coisa de carácter duvidoso.

O sonso pode ser estúpido, mas em regra não o é. É alguém que se safa muito bem com as sacanices de terceira ordem que pratica com a descontracção própria da esperteza saloia que o habita, sacanices essas que são daquelas que moem, mesmo se não partem ossos. Está mais paredes-meias com o coitadinho, que a maior parte das pessoas acaba por achar mal confrontar, pois até é bom rapaz. O sonso é, também em regra, bem aceite e compreendido por muita gente que o rodeia e até protege, que acha mal que se diga que o sonso é sonso, mesmo quando admitem que o é. Mas, como também é visto como coitadinho, não devemos perturbá-lo.

O sonso é, pois, uma espécie protegida em diversos ecossistemas sociais onde exista muita gente com bom íntimo, bom coração e virtudes caritativas que em mim escasseiam ao ponto da nulidade.

Confesso, devido à minha natureza que alguns dizem sanguínea, outros dizem própria de um sangue de barata, o sonso chateia-me sobremaneira e chateia-me tanto mais quanto acabe por me auto-censurar na vontade de o desancar e acabar por ficar eu mal visto como um bruto incorrigível.

Por isso, há casos de sonsos que aturo ou vou aturando há anos. Não muitos, alguns apenas, mas que chegam para me fazer levantar o nevoeiro numa manhã ensolarada. E vou ou fui aturando por respeito a quem me diz, olha lá, ele é sonso e faz isso, mas é sem má intenção, coitadinho, nem percebe bem. Faz sem querer.

Mas o rai’s parta é que faz e eu, como já disse, duvido que seja tão estúpido como às vezes o querem fazer passar.

E o sonso quando confrontado, mesmo que de forma mínima, reage sempre com aquele ar de castor supreendido, arqueando muito as sobrancelhas como um desenho animado japonês ou um calimero injustiçado (caso os calimeros tivessem sobrancelhas debaixo da casquinha do ovo).

Pelo que, nos últimos tempos, decidi iniciar uma espécie de campanha unipessoal anti-sonso.

E por esses dias que se foram passando fiz um par de raides, confesso que ainda algo desajeitados pois não consegui varrer por completo o complexo de culpa que me inculcaram há anos em nome da defesa dos sonsos como espécie a proteger da agressão, no sentido de limpar alguns sonsos do meu horizonte visual quotidiano, assim a ver se mudam de passeio quando vamos em trajectórias potencialmente concordantes.

Ainda não deu para avaliar todos os efeitos, mas pelo menos já me fez ficar um pouco melhor comigo mesmo e quero mesmo acreditar que me reduziu os níveis de secreção de cortisol. A sério. É como se, por fim, tivesse começado a ver o fim a uma praga de brotoeja comichosa.

Era um pequeno prazer que me andava a negar a mim mesmo, sem vantagem outra que não fosse evitar este ou aquele olhar reprovador e a confirmação da minha discutível civilidade. Quando a efeitos negativos, a acumulação da exposição regular à sonsice ou sonseria estava claramente a afectar-me o brilho da cútis e a ensombrecer-me o olhar.

Agora posso dizer: há uma boa parte de mim que sorri com vontade quando vejo certos sonsos acelerar o passo para evitarem cruzar-se comigo. E as manhãs sorrirão sempre ensolaradas na minha direcção, mesmo quando os dias se convencerem que o Outono chegou.