… que ontem me bateu na moleirinha e deixou meio enxaquecado.
Ou não. Porque já na véspera dissera o mesmo que sinto agora e mesmo há mais tempo, numa muito curta digressão política, mesmo a finalizar a sessão em Moura.
Há uma enorme crise de confiança na sociedade portuguesa, em geral, e na classe docente, em particular. Aos defeitos congénitos de uma nossa mítica maneira de ser, juntou-se a erosão do carácter (público e privado) de muitos daqueles com que nos deparamos na vida social, pessoal ou na esfera mediática.
Aquela crise de valores de que se fala sistemicamente, aquele bater no fundo que parece estar sempre a acontecer mais uma vez, a ausência de figuras inspiradoras de confiança e segurança, que mantenham a sua coerência para além da ocasião ou que, no mínimo, saibam mudar de acordo com a mudança das circunstâncias de um modo que se compreenda, para além do sofisma.
A sociedade portuguesa socratizou-se porque estava pronta para se socratizar e os muitos dos focos de anti-socratismo são, afinal, meros reflexos simétricos num espelho que devolve uma imagem só aparentemente diferente.
Dizia-me, e muito bem, uma colega hoje que este governo e a máquina que o envolve conhece muito bem o ser português nas suas fraquezas mais comezinhas, pois só assim se consegue uma manipulação tão eficaz das consciências que se anestesiam a si mesmas, num engano de auto-satisfação.
A encenação do conflito extremou-se com os sucessivos bluffs do sócrates-mor, que pouco depois se desmentia sem pudor sequer. E essa encenação foi sendo aceite sucessivamente por todos aqueles que se sentiram bem no papel, transitório e instrumental, de parceiros na coreografia.
A seu tempo e em seu tempo, quase todos foram colher um acordo, um compromisso, uma aliança de ocasião, à mão do sócrates-mor ou dos seus socratinhos (e socratinhas), enviado(a)s em sua representação, na falta do original.
Sobraram as franjas, voluntariamente (auto)marginalizadas, ou não, que procuram ainda não se deixar tomar pelos tentáculos lamacentos do pântano, agora sim pastoso como nenhum guterres o terá imaginado a acabar o século XX.
O século XXI português começou mal, como têm começado os últimos séculos da nossa história, com um regime político a definhar e à espera de um qualquer golpe que o agite, para tudo recomeçar de novo. Em Oitocentos foram os napoleónicos e os liberais que, em 20 anos, aceleraram a História da queda do absolutismo. Em Novecentos, os republicanos e carbonários façanhudos a acabarem com a Monarquia ao fim da primeira década. Em qualquer dos casos, a erosão das novas soluções foi rápida.
No novo milénio, contudo, corremos o risco de o definhar se vir a prolongar e se assistir à regeneração da decadência numa variação do modelo rotativo. Porque não nos deixemos enganar, que o que está em causa é apenas a redistribuição do que é negociado à mesa do orçamento por diferentes canais (que há uns mais secos do que outros), não é sequer a redefinição dos ditos canais.
O país socratizou-se como em devido tempo se tinha salazarisado, por comodismo, apatia, receio de que o que viesse fosse ainda pior. E, neste processo indolente, a própria oposição ao socratismo se tornou uma sua emanação, com uma espécie de aspirantes a sócrates, sócrates-mirins ainda, a tentar copiar-lhe os tiques de sucesso: a aparente firmeza, a habilidade em dizer a mesma coisa e o seu contrário sem rebuço, o incentivo à inveja mesquinha, o dividir para reinar entre os pobres de espírito, a transformação de derrotas evidentes em vitórias mediáticas, a instrumentalização do Estado em favor de uma facção, a cooptação de figuras de toque do campo adversário (caso dos júdices e marinhospintos), a eliminação hábil das oposições de proximidade.
E se tudo isto é no país, o que dizer – regressando quase ao início – à chamada classe docente? Limita-se a ser um dos espelhos do país. A vidinha está vitoriosa e, um pouco como escreveu Eduardo Lourenço sobre o contexto pós-revolucionário, é como se nada (fascismo, perda do Império, revolução, naquele caso) tivesse acontecido (manifestações, protestos inflamados, abaixo-assinados esmagadores, greves com 101% de adesão).
Nem de propósito é do ano em que nasci… e o Festival até era ali por Março…
Janeiro 31, 2011 at 4:49 pm
Bom texto Paulo.o Socretismo e o Salazarismo são duas faces da mesma moeda: o sebastianismo…este já o dissera muito antes…porra tenho mesmo de ir…
«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia… explora. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. A intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada.»
( transcrição do início do primeiro livro das Farpas, escrito por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão e publicado no dia 17 de Junho de 1871)
Janeiro 31, 2011 at 4:55 pm
Excelente reflexão.
Janeiro 31, 2011 at 4:59 pm
O empresário tipo português…
Janeiro 31, 2011 at 5:02 pm
Sofro com isso. Imenso. Enquanto professor e cidadão. Mas não me calo.
Janeiro 31, 2011 at 5:04 pm
Muito bom…
No meio desta m**** toda, quem ainda passa por idiota são todos os que, como eu (de tão coerentes… rir, pois já nem sei o que isso significa),decidiram não entregar OI nem pedir aulas.
Fartinha disto tudo.
Janeiro 31, 2011 at 5:13 pm
Fabuloso.
Mas eu sou suspeito…
😉
Janeiro 31, 2011 at 5:16 pm
#6,
O SCP perdeu…
Janeiro 31, 2011 at 5:20 pm
Já tinha associado.
🙂 🙂 🙂
Janeiro 31, 2011 at 5:21 pm
Quem manda no país não são os pequenos empresários, são os grandes grupos financeiros e mediáticos, em coligação com o Bloco Central PS-PSD.
Os pequenos empresários são em geral uns herois, dadas as suas fracas qualificações académicas e estão a ser tanto ou mais sacrificados que os professores, com este governo.
Janeiro 31, 2011 at 5:23 pm
#1
Muito bem, Buli!
É mesmo um texto adequado para este post.
“Farpas”, claro… 🙂
Janeiro 31, 2011 at 5:38 pm
Abençoado Sol!
Bendita Enxaqueca!
As sinapses continuam a fazer o seu excelente trabalho… apesar do Inverno.
Janeiro 31, 2011 at 5:52 pm
Muito Bom! Subscrevo.
#11 Abençoada Enxaqueca 🙂
Janeiro 31, 2011 at 6:01 pm
#0,
Que tipo de acções propõe?
Quer dar-nos o seu exemplo quotidiano?
Já alguma vez criou um posto de trabalho?
Sei lá… talvez se pudesse fazer luz.
Janeiro 31, 2011 at 6:07 pm
#13,
Isso é comigo?
Janeiro 31, 2011 at 6:10 pm
O Povo acomoda-se porque o Povo tem medo de perder o que pouco que tem, quando mais nada tiver a perder mais depressa o Povo se revoltará.
Que a Força continue contigo, Camarada!
Janeiro 31, 2011 at 6:37 pm
O Socretismo, tal como, p.ex., antes, o Cavaquismo não são “corpos estranhos” no seio da sociedade ou do país. Cada um, na sua altura, configura o “espírito do seu tempo”, para usar a consabida fórmula hegeliana.
Daí o êxito do Socretismo, a sua implantação e resistência à usura do “tempo político”, mais volátil do que qualquer outro. Para espanto de muitos e desgraça da maioria…
É comum ouvir-se frases deste teor: “o Sócrates tem lá as suas coisas, até pode ser um grande aldrabão, mas é um ganda político!”. Ocorre logo notar que há aqui uma espécie de inversão perversa da máxima: “o hábito faz o monge”. Porque as pessoas passaram a identifcar a política com os seus protagonistas, retendo nestes – e generalizando-os como atributos determinantes do “ser político” – os traços de carácter e de actuação de um “sujeito eficaz na acção e interacção social”, acima de tudo. Acima, designadamente, da ética e dos valores.
Esta glorificação de uma moral baixamente pragmática e utilitarista é entendida como modelo social de conduta. Mas este só é pregnante porque opera numa sociedade já atomizada e que perdeu o seu centro de gravidade axiológico. A sociedade portuguesa, em particular, tem um terrível lastro de ausência de cultura política e cívica, um “charco” (para me aproximar da imagética do Paulo) em que Sócrates se sente como “peixe na água”.
Janeiro 31, 2011 at 6:38 pm
#15,
Esta é uma acusação que se costuma atribuir às forças políticas de esquerda. Até se diz que quanto pior, melhor, ou falam da política da terra queimada……..
Interessante constatar.
Muito interessante, mesmo.
Janeiro 31, 2011 at 6:42 pm
#0,
“O país socratizou-se como em devido tempo se tinha salazarisado, por comodismo, apatia, receio de que o que viesse fosse ainda pior.”
Não entendo a questão posta nestes termos.
Calma!
São duas realidades distintas, apesar de tudo. Mas isto é a minha opinião. Eu, que não sou de História, mas também não é preciso sê-lo para discordar totalmente desta constatação a negrito, que considero muito limitativa na análise.
Janeiro 31, 2011 at 6:45 pm
#15,
Ainda estou a meditar nisto….Será que esta opinião tem a ver com as contestações a que temos assistido nos países Árabes?
Janeiro 31, 2011 at 6:53 pm
“O país socratizou-se como em devido tempo se tinha salazarisado, por comodismo, apatia, receio de que o que viesse fosse ainda pior.”
E andaremos outros quarenta e tal anos assim?
Janeiro 31, 2011 at 6:59 pm
Vai lá estar este estar noite?
Janeiro 31, 2011 at 7:00 pm
Retrato do português típico e médio em 2 partes…1ª
Janeiro 31, 2011 at 7:01 pm
2ª parte
Janeiro 31, 2011 at 7:02 pm
Concluindo…
Janeiro 31, 2011 at 7:09 pm
Os ânimos não andam muito arribados por aqui… Há dias assim. Isso passa.
#9 PMP
Subscrevo.
Janeiro 31, 2011 at 7:18 pm
Interessante este paralelismo…
E o que é facto é que até as “oligarquias” renasceram, encostadas ao “chefe-mor”, como convem.
Janeiro 31, 2011 at 8:03 pm
A amor e a fome governam o mundo…
It is about how the solutions for the world financial crisis that the CEOs and Big pols are massaging in a posh conference centre in snowy Davos, Switzerland have turned into a global economic catastrophe in the streets of Cairo, the current ground zero of a certain-to-spread wave of international unrest.
Yes, the tens of thousands in the streets demanding the ouster of the cruel Mubarak regime are pressing for their right to make a political choice, but they are being driven by an economic disaster that have sent unemployment skyrocketing and food prices climbing.
People are out in the streets not just to meet but by their need to eat.
Danny Schechter
Janeiro 31, 2011 at 8:22 pm
SE ANDAM FERRÃO..VÊ ESTA PROFECIA..
Janeiro 31, 2011 at 9:52 pm
A centralidade e a omnipresença do Estado na vida dos cidadãos criou uma habituação tão grave e tão terrível, que qualquer tipo de autonomia, de desintoxicação, fica desde logo gravemente comprometida.
Este foi o grande trunfo da política de Salazar, replicado ideologicamente por Cunhal (o seu ideal era transformar todos os portugueses em funcionários do Estado).
Sócrates limita-se a continuar a fornecer aos “agarrados” do Estado, o produto de que sempre dependeram, embora este seja cada vez mais aldrabado.
Se o Estado zela por todos nós, como podemos ir contra a Sua Vontade, sem entrarmos em violenta negação da nossa própria identidade, cimentada paulatinamente ao longo dos últimos 78 anos?
O cidadão português não é ignorante mas apenas demasiado preguiçoso para sair debaixo da saia do Estado; incapaz de abandonar o paternalismo das mafias que o “representam”; frouxo demais para reclamar a carta de foral.
Janeiro 31, 2011 at 10:34 pm
De tão tolo o socratinismo nunca se poderá naturalizar…
São mesmo cretinices…
Fevereiro 1, 2011 at 12:04 am
A passividade ante a socretinização:
Fevereiro 1, 2011 at 12:51 am
Sábias palavras!
Daí o meu desalento…
Estaremos condenados a perpetuar por ignorância, cansaço, descrença ou impotência esta inoperância dos docentes em se moblizarem para criar mudança? Talvez seja difícil! Mas, pela minha parte, vale a pena tentar!!!!