Antes de tentar fazer uma análise do projecto de decreto-lei apresentado pelo ME para a gestão das escolas e estabelecimentos de ensino públicos, gostaria de fazer algumas considerações prévias, que acho essenciais para esclarecer eventuais (pre)conceitos, assim como para justificar porque esse debate é importante. E já agora porque acho eu que tenho algo para dizer, pois não sou um especialista instantâneo em toda e qualquer matéria educativa.
Vamos lá:
- Porque interessa este debate? Interessa porque pretende mudar o regime de administração da rede de ensino público não-superior, menos de uma década depois da última reforma (durante o Ministério de Marçal Grilo), sem que se perceba exactamente os critérios que justificam tal mudança. São critérios fundamentalmente administrativo-financeiros? São critérios de natureza pedagógica? É uma mudança conceptual em todo o modelo? Interessa perceber porque acontece esta mudança, que objectivos persegue, que fundamentação têm as soluções apresentadas e, já agora, se não existiriam outras soluções mais adequadas à resolução dos bloqueios eventualmente detectados no actual modelo.
- A quem interessa este debate? Interessa verdadeiramente a todos, em especial a todos os actores sociais que se cruzam na Escola Pública e que são chamados a intervir nela por força destas propostas (embora em boa verdade já o fossem anteriormente, embora alguns não tenham comparecido da forma desejável). Interessaria ao próprio ME ter suscitado a discussão a partir de um documento aberto e não de um articulado onde se adivinha a possibilidade de acertos meramente pontuais. Interessa às famílias, que se pretende que venham a ter uma quota-parte de responsabilização maior na gestão das escolas. O mesmo se aplica para as autarquias locais, que no caso do 1º CEB nem sempre têm feito o melhor que poderiam. Interessa aos professores e funcionários porque – até mais do que os alunos – são eles que passam lá a maior parte da sua vida e lá fazem a sua carreira profissional. Porque quando dizemos que não haveria Escola sem alunos, se esquece que, sendo isso verdade, são os professores que lá permanecem mais tempo.
- Como se deveria realizar idealmente este debate? Deveria ser feito com tempo para uma verdadeira discussão pública, assim como deveria ser dinamizado pelo próprio ME directamente ou através dos seus organismos regionais ou mesmo a partir do Conselho das Escolhas ou do Conselho Nacional da Educação, entidades que – de acordo com o seu próprio estatuto – deveriam ser consultadas antes da produção de projecto legislativo e não apenas a posteriori. Por estranho que pareça, e isso seria possível sensibilizando e mobilizando os Centros de Formação de Professores, seria utilíssimo ter estabelecido um calendário para a discussão local e regional do tema durante este mês de Janeiro e, a partir daí, congregar os contributos recolhidos de Associações de Pais, Autarquias e Professores. Não é negar completamente a representatividade a entidades como os Sindicatos, a Confap ou a ANMP, mas a verdade é que neste momento aqueles que essas organizações representam estão completamente a leste do que se passa e só estão informados a partir dos seus próprios meios. O que só foi reforçado pelo lançamento da discussão pública no dia 26 de Dezembro passado.
- Porque razão no universo acho eu que tenho algo a dizer sobre o assunto? Pela mesma razão que qualquer outro professor, encarregado de educação, autarca ou cidadão comum interessado na vida pública – neste caso educativa – do país. Não acho que a minha opinião tenha um especial valor acrescido em relação à generalidade dos meus colegas, pois nunca exerci (nem espero exercer) qualquer cargo na área da administração ou gestão escolar. Não tenho especial conhecimento prático dessas matérias para além da observação, durante cerca de duas décadas, do funcionamento de uma dezena de escolas públicas. Em termos teóricos, posso ter algum crédito adicional porque, por circunstâncias variadas, acabei por ler alguma bibliografia sobre gestão, quer em termos de comparação de modelos de gestão nos sectores público e privado (ajudei uma pessoa da família nas leituras teóricas para uma tese na área da Gestão, tendo traduzido uns 20 artigos sobre o assunto e lido uma mão-cheia de obras de referência sobre o tema. Para além disso, e por razões relacionadas com o meu próprio doutoramento – mesmo se não se nota muito no produto final, porque foram umas dezenas de páginas que se sacrificaram para não causar uma apoplexia ao orientador e júri – li bastante bibliografia sobre estilos de school management numa perspectiva comparativa e mais especificamente sobre a gestão escolar cada vez estar mais feminizada, o que tem implicações teóricas e práticas interessantes. Pelo que, pelo menos no plano das ideias e modelos, estou suficientemente informado.
Tendo em atenção estes esclarecimentos, penso que é possível agarrar nisto e analisar-lhe as premissas, identificar as eventuais vantagens e enumerar os aspectos que me merecem discordância, tanto em termos de modelo abstracto como de conretização prática no nosso contexto.
Janeiro 2, 2008 at 3:01 pm
Comme d’habitude, os meus Blogues publicaram o post – vou tentar organizar na minha Escola uma reunião de professores sobre o assunto…
Janeiro 2, 2008 at 5:38 pm
Algumas notas soltas:
-o Paulo em muitos dos seus post tem vindo a demonstrar as incoerências do ministério da Educação em matéria de política educativa. Na verdade tem feito bem essas demonstrações aproveitando de modo consequente as asneiras e reais incoerências de discurso e práticas dos inquilinos actuais da 5 de Outubro. Essa é uma das linhas de crítica mas há outra que eu penso dever salientar-se: há uma linha de coerência nas várias matérias da política educativa actual. Para além do economicismo muitas vezes realçado e que é evidente, todas as medidas mais importantes e das quais saliento a revisão do estatuto dos professores e agora a revisão da gestão das escolas visam um modelo de escola e de professor, hierarquizados e controlados, onde a autonomia é altamente cerceada e onde a possibilidade dos actores sociais intervirem na definição das políticas educativas está completamente fora do baralho.
Penso que a fonte de inspiração das políticas educativas no Portugal actual estão na terceira via inglesa que é uma forma de neoliberalismo de rosto humano que se seguiu ao neoliberalismo conservador da Tatcher.
Comparando os modelos de professor e de gestão de escola inglesa com as iniciativas legislativas recentes em Portugal penso que se verificam semelhanças muito grandes. Professores desmoralizados, mal vistos socialmente, sem autonomia, controlados administrativamente pelo superior e pelos testes e exames abundantes, ganhando em função dos resultados destes. Gestão centralizada num director com poderes arbitrários imensos. Gestão das escolas vista como uma gestão de empresa em que muitos dos seus serviços, incluindo a gestão já estão em muitas escolas atribuídas a empresas privadas. Este exemplo que tenho a noção que é o que existe na Inglaterra pelo que leio (e quem conhecer melhor por favor me informe) é aquele que serve de meta para o nosso sistema educativo, e tudo pelas mãos dos “socialistas” portugueses. Estamos a caminho. Esta é a coerência que encontro nas políticas educativas actuais. (Já agora há muito de semelhante nas políticas de saúde também).
Janeiro 2, 2008 at 6:10 pm
Quase concordo.
Só não concordo mais porque o que se passou na Inglaterra não surgiu apenas com 3ª via político-ideológica Blair/Giddens mas sim desde os tempos da Thatcher.
O declínio da Escola Pública inglesa vem de antes dos anos 90.
Janeiro 2, 2008 at 8:17 pm
Paulo
Concordo com a ideia de debates locais ou regionais, mas temo que o pouco tempo não dê margem para se organizarem esses encontros.
Podia-se também organizar uma blogagem colectiva sobre esta matéria. Pedir talvez ao Antero, que é fabuloso, para fazer uma imagem alusiva e associada a um slogan para o efeito. É apenas uma sugestão.
Janeiro 2, 2008 at 8:55 pm
Tal como já referi por aqui inúmeras vezes, o modelo é de facto o britânico, ainda que com adaptações (a D. Lurdes sabe bem que a comunidade local é uma mera figura de retórica nestas paragens). Mas o Paulo tem razão quando afirma que o referido modelo é pré-Giddens-da-terceira-via.
Concordo igualmente que, queiramos ou não, há coerência programática na articulação entre o ECD, a avaliação de desempenho e o novo modelo de gestão. Até a sequenciação escolhida vem sublinhar a sua premissa economicista, já que teria feito mais sentido começar pela gestão. Assim, avizinham-se já alguns ‘bugs’ nesta tentativa de instalar simultaneamente os dois sistemas: avaliação e gestão. A começar pelo facto de virmos a ser avaliados em 2008 de acordo com um normativo local determinado pelo Pedagógico actual, e em 2009 por um outro decorrente do regulamento interno e das normas instituídas pelo suposto Conselho Geral transitório. Sou levado a crer que existirão aliás muitos mais ‘bugs’ a infectarem-nos a vida.
Janeiro 2, 2008 at 9:33 pm
Porque razão no universo achas tu que tens algo a dizer sobre o assunto?
Porque foste eleito como o melhor bloguista da temática da educação, e isso não foi de certeza uma escolha por “cunhas” ou por pertenceres a um partido político. Tu e o Antero são os nossos melhores representantes e não me importava nada de pagar as cotas do sindicato a bloguistas tão ilustres.
Janeiro 2, 2008 at 10:15 pm
Olha que congelado como estou, até que me dava jeito um peditório.
😉
Janeiro 3, 2008 at 1:19 am
Ainda não fiz uma leitura que quero fazer, que é ler comparativamente este projecto e o decreto da gestão ainda em vigor, mas a 1ª ideia que me vem ao lembrar-me da actual Assembleia de Escola/Agrupamento é que o primeiro desejo deste governo, com este projecto, é pôr os professores em minoria no Conselho Geral e na escolha do director (exceptuando a questão da escolha do director, as competências não são muito diferentes das da Assembleia). Mas talvez me engane – será que essa minoria é para concentrar nisso as atenções (escandalizadas) dos professores e haver cedência a fim de os pôr “contentes”?
A única coisa que já fui comparar com os textos à frente dos olhos foi todo o nº 2 do art. 3º do projecto com o art. 48 da Lei de Bases (já bastante referido ultimamente). Esse nº 2 do art. 3º começa por referir “princípios e objectivos consagrados na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo, designadamente:” e, ao ler as alíneas do “designadamente” com a LBSE à frente o primeiro comentário para mim mesma foi: Que habilidosos, hein! (É que eu julgava que “designadamente” obrigava a respeitar o texto… enfim, ingenuidades minhas… e também quem mandou que o art. 48 da Lei de Bases tenha uns pontos um tanto vagos? 😦 )
Janeiro 3, 2008 at 6:46 pm
Os textos jurídicos têm uma hierarquia e é muito corrente uma lei (votada pelo Parlamento) ser regulamentada por um decreto (decido em Conselho de Ministros). Mas um texto jurídico inferior (um decreto), não pode prevalecer ou contrariar uma lei, assim como uma lei não pode contrariar os artigos da Constituição.
A falha mais grave que encontro no texto é o relaxamento dos critérios de exigência profissional nos degraus superiores da hierarquia preconizada. Isto subverte completamente os princípios anunciados.
Janeiro 4, 2008 at 8:58 pm
O António Ferrão tem razão mas será vista essa perspectiva pelos sindicatos?
Janeiro 5, 2008 at 12:29 pm
O Ministério da Educação na sua santa incompetência teima em ignorar que a razão principal dos problemas do nosso ensino escolar, causadora de todos os outros problemas, é um paradigma viciado, que foi imposto a este sistema pelo mesmo Ministério, quando há 30 anos prescindiu-se de desenvolver as capacidades de memorização dos alunos. Este paradigma ridículo está a ser reforçado nos seus efeitos nefastos pelo método global de ensino de leitura, que deixa mais de metade dos alunos sem capacidade efectiva de ler.
Estes assuntos estão discutidos em mais pormenor no nosso blog, onde igualmente propusemos as medidas que permitam reconstruir o ensino escolar.
Comparados com este disparate pedagógico monumental, todos os outros factores, incluindo os modelos de gestão escolar, são manifestamente secundários. Os Senhores estão a combater fantasmas, esquecendo dos problemas verdadeiros e ajudando ao Ministério em criar as cortinas de fumo.