Se há algo que parece incontroverso em tudo o que se está a passar actualmente em termos de política governamental em relação aos docentes é que as novas medidas irão deteriorar bastante o clima da generalidade das escolas, colocando em risco alguns dos últimos laços de coesão e solidariedade entre colegas, questiúnculas pessoais de parte.
Justificam alguns teóricos que isso é necessário, por causa não só da história do reconhecimento do mérito e da diferenciação de níveis de responsabilidade, mas principalmente porque essa é a tendência dominante ao nível das organizações que se querem eficientes. Ora isso é que me parece muito controverso.
Numa revisão da literatura sobre esse assunto um autor resume assim a leitura de Brunet sobre alguns aspectos das investigações em meio empresarial:
– Quando as políticas e os regulamentos restringem em demasia o comportamento dos indivíduos cria-se um clima impessoal.
– Quando existe um grau de centralização e hierarquização elevado originam-se percepções de clima mais negativas, associadas a características como a autocracia, a rigidez e o bloqueamento da criatividade.
– A percepção do clima é alterada conforme a posição hierárquica dos indivíduos; precisando, quanto mais “elevado” o posto maior a tendência para percepcionar a organização como menos autocrática, mais centrada nos interesses dos indivíduos, mais amigável e mais apta para se renovar. (Luís Miguel Carvalho, Clima de Escola e Estabilidade dos Professores, 1992, p. 44)
Não é preciso muito esforço para reconhecer que tudo isto se aplica na perfeição ao que se está a passar nas nossas Escolas. A impessoalidade tenderá a aumentar, assim como a criação de hierarquias espúrias só conduzirá à rigidificação dos comportamentos e ao acomodamento a atitudes conformistas e clientelares, assim como o topo da estrutura tenderá a não perceber o que se passa na base.
Já aqui fui criticado por parecer dar uma grande importância aos aspectos ligados às relações pessoais como garantia de um clima positivo de trabalho nas Escolas e como factor que pode diminuir o stress e burnout profissional. Mas mantenho integralmente essa posição.
Conheço as teorias que defendem que uma burocracia ou serviço funciona tanto melhor quanto mais impessoal for e quanto menos espaço existir para intromissões no desempenho das funções. Até acredito que isso aconteça em funções meramente burocráticas. No caso da docência não acho que isso assim seja, porque o material com que trabalhamos é humano e há muito que se exige que os docentes sejam humanos, flexíveis, adaptáveis às circunstâncias dos seus alunos. Mas depois exige-se quem entre si e nas relações organizacionais no âmbito de Escola impere a frieza dos processos impessoais.
Por isso a tendência actual para fragmentar a carreira, criando fócos adicionais de tensão e fricção – que nada têm a ver com questões de mérito ou de uma rigorosa avaliação da qualidade do desempenho dos docentes – só virá estragar o clima das escolas e, em muitos casos, azedar as relações pessoais com o pretexto de uma competição que, na essência, não faz sentido, porque vai desincentivar a cooperação entre docentes.
Mas como demonstração cabal disso, deixo aqui o último parágrafo da obra acima citada:
Uma última conclusão prende-se com a importância das relações pessoais – relações entre pares mas também com os alunos – enquanto elemento da vida escolar mais privilegiado pelos professores.
Entre professores, o peso dessas relações é evidente e aparece muito ligado a intens do clima organizacional que distinguem percepções globais positivas e negativas: a cooperação entre professores, o envolvimento em decisões, o apoio sentido, a consideração das suas ideias. A intensidade das relações entre professores é, aliás, uma das características apresentadas pelos docentes portugueses susceptível de indiciar uma coesão interna do corpo docente (…). (Idem, ibidem, pp. 104-105)
As coisas eram efectivamente assim quando entrei para a docência e assim se foram mantendo, com maiores ou menores sobressaltos. É isso que está agora em acelerada erosão. É esse um dos principais objectivos mais explícitos da acção deste Ministério da Educação: partir a classe docente e não apenas em termos de progressão na carreira.
Junho 4, 2007 at 11:46 am
No meio deste processo todo, para além de perdermos as tais “regalias???”, há uma parte “relativamente importante” de actores que foram votados ao esquecimento: os nossos alunos!
Porquê? entre outras coisas, porque “meia duzia??” de colegas, neste momento estão, mais preocupados com o futuro, e a instabilidade do corpo docente não traz benefícios aos miúdos. Dúvidpo que algum presidente de CE tenha acompanhado convenientemente a sua escola. Ele é reunião semana sim, semana sim, ele é concurso dos titulares, ele é reuniõs por tudo e por nada, ele é o desalento… E com os miúdos? quem se preocupa? Talvez os “destitulados”, os que não servem para mais nada a não ser ensinar… Pois!…
Junho 4, 2007 at 2:58 pm
Os alunos em todas as lutas docentes, nunca interessaram muito.
o que verdadeiramente os lesa não é o processo em si, mas sim os critérios deste, onde o trabalho pedagógico desenvolovido com eles é completamenbte ignorado.
A PCE da minha escola raramente vai às reuniões fora da escola, normalmente delega nos “vices”.
Junho 4, 2007 at 5:50 pm
Experimente ler “A Corrosão do Carácter”, de Richard Sennet (de preferência em inglês já que a trad. tuga é mesmo péssima). Ele vai mais longe ao delinear as consequências mais vastas deste novo modelo de relações laborais.
Junho 4, 2007 at 5:54 pm
Descobri que o mesmo livro já era assunto numa outra caixa. Ainda bem, porque é mesmo muito bom (mas em inglês, please).
Junho 4, 2007 at 8:41 pm
Receio que a intenção seja essa mesma , a desunião… ou talvez me engane!
Junho 4, 2007 at 9:04 pm
Paulo
A degradação das relações pessoais entre professores também pode ser perspectivada numa outra dimensão digamos… política. Aquilo a que estamos a assistir é uma regressão maciça das formas de democracia interna dos espaços laborais que foram conquistadas em 1974-75 (ok, já sei, com todos os excessos e abusos inerentes, que eu diria quase inevitáveis quando estamos a lidar com experimentações sociais e políticas que visem emancipar as pessoas). Parte do clima convivencial nas escolas, aquilo que as diferenciava da selva «competitiva» das empresas privadas e que me fazia apreciar boa parte do meu trabalho, assentava precisamente no facto de as escolas ainda preservarem certas formas de democracia participativa e de tomada de decisões numa base colegial. Isso manifestava-se no modo como as orientações fundamentais das escolas, a começar pelas próprias regras do seu funcionamento, eram quase sempre o produto de discussões e de votações colectivas, no seio dos conselhos de grupo e dos conselhos pedagógicos. Ainda que tudo isso se tenha rotinizado ao ponto de já nem sequer repararmos no seu conteúdo efectivamente democrático. O que está a acontecer, por via destas recentes políticas ministeriais, é a morte pura e simples de qualquer arremedo de democracia escolar, o regresso a micropoderes autocráticos, desde as atribuições cada vez mais discricionários agora concedidas aos conselhos executivos até à imposição, nos departamentos, de professores titulares praticamente nomeados por inerência de funções (vai ser, por exemplo, o meu caso, pois provavelmente irei ser o único professor titular no meu departamento, o que irá inviabilizar qualquer hipótese da minha eleição: serei simplesmente imposto aos meus colegas para um cargo que nem sequer desejo preencher). Parece-me, pois, que a próxima luta – uma luta que as direcções sindicais nem sequer são capazes de conceber – deverá centrar-se no sentido de tentarmos, de todas as maneiras, contrariar esta tendência no sentido de “empresarializar” as escolas e de minar tudo o que cheire a democracia interna. Tanto mais quanto se anunciam já alterações profundas na gestão das escolas: se continuarmos na posição de revolta impotente, lutando apenas por um paupérrimo «lugar ao sol», hostilizando colegas em vez de direccionarmos as baterias contra o Ministério, os gestores nomeados pelo poder central serão o último prego que falta pregar no caixão onde jaz a democracia interna das escolas…
Junho 4, 2007 at 9:10 pm
Plenamente de acordo, Mário.
A única maneira é quem entrar para o “sistema” conseguir não se deixar levar – embora eu saiba como qualquer réstia de poder inebria – e usar o seu eventual “poder” para fomentar a solidariedade entre os docentes, cada vez mais ameaçada.
Sim dude teatcher, o livro foi encomendado na versão original,
Junho 4, 2007 at 11:21 pm
Completamente de acordo tanto com o Paulo, como com o Mário.
Uma das formas que uso para ainda ir contendo “meu chefe” (que apesar de honesto se lhe derem corda, tem uma certa tendência para…) é conseguir saber tanto, ou até mais se for possível, dos articulados da legislação que vai saindo, para impedir interpretações abusivas e/ou dúbias. Com este processo, tenho conseguido alguma coisita.
Quanto ao clima da “sala de profs” é que não sei mesmo o que se há-de fazer… o medo faz pessoal está a refugiar-se na indiferença… parece que nada lhes diz respeito!!!
Ao contrário, do que acham os colegas dos dois primeiros comentários, a minha opinião é precisamente a contrária. São os alunos que ainda movimentam os professores e as escolas. É por eles e sobre eles que os professores ainda trabalham e conversam com interesse.
Que acusem o ME e respectivos inquilinos de não se preocuparem com os alunos, usando-os sem qualquer pudor, como joguetes para nos lixarem, aceito. Nas escolas, não me parece que seja isso o que acontece.
Junho 4, 2007 at 11:24 pm
Bolas!!! Isto para além da irritação que me provoca uma disteclografia intensa, é cansaço! Ultimamente passo a vida a fazer erratas! Cá vai mais uma: “o medo faz pessoal refugiar-se na indiferença” … tirar o “está a”
Junho 4, 2007 at 11:57 pm
M Lisboa:
Não terei sido muito claro no meu comentário, mas era precisamente a isso que me referia:
“…ME e respectivos inquilinos de não se preocuparem com os alunos…”
Junho 5, 2007 at 2:07 am
jmc, peço desculpa1 Percebi o contrário, mas ainda bem que estamos de acordo. É por eles que ainda “nos movemos”. O problema é que é com isso que os “inquilinos” contam. Sabem que nunca “deixariamos os putos na mão” apesar de passarem o tempo a dizerem que não trabalhamos nem com os alunos, nem para os alunos.