Vamos lá então à parte da entrevista da Ministra da Educação ao Correio da Manhã que mais irritação provocou em muitos docentes, ou seja, aquela em que MLR disserta sobre o insucesso escolar, os níveis de repetência e o facilitismo.

– Uma das críticas que se faz é ao facilitismo instalado na escola pública. Não há exigência, não há trabalho. Que a escola devia chumbar quem não sabe e não trabalha? Concorda com isto?

– Sabe que há muitas contradições nesse discurso. E no nosso sistema há muitas contradições. Porque, em minha opinião, a repetência ou o chumbo é o elemento mais facilitista do sistema educativo.

– Mais facilista? Como?

– É a coisa mais fácil. O aluno está com dificuldades, fica ali num cantinho da sala e no final do ano repete. Isso é o que há de mais facilitista no nosso sistema. E são muitos e pratica-se com demasiada frequência.

– Com muita frequência?

– Sim. Eu tenho um estudo do PISA ( Programme for International Student Assessment) com coisas muito interessantes. Este estudo procura comparar os resultados dos países do Sul que têm todos estes fenómenos da repetência e como a repetência não ajuda a melhorar os resultados escolares.

– Não ficam a saber mais?

– Não. O princípio é este: não sabes ficas mais um ano para repetires toda a matéria que deste para ficares a saber. E o que acontece é que a segunda parte desta premissa não se verifica. Ele chumba, fica para repetir, repete mas não aprende. Pelo contrário. Desaprende.

– Fica pior?

– Fica pior. E por isso é que eu digo que é facilitista porque é a maneira de deixar os alunos entregues a si mesmo. É uma contradição do nosso sistema. Que é considerar que a exigência se mede pelo número dos que repetem. Nós temos inúmeros alunos a repetir muito mais do que a média de todos os países da Europa ou mesmo da OCDE. Somos o País em que há mais repetências.

– Mais chumbos?

– Somos o País em que há mais chumbos. E por aí o nosso sistema não seria facilitista, seria exigente, mas na realidade é facilitista porque essa repetência não serve para aumentar o rigor e a exigência de trabalho com esses alunos. Ficam numa espécie de limbo que depois prejudicam muitíssimo os nossos resultados como se pode ver no estudo do PISA.

– Prejudicam como?

– Se considerarmos na amostra os alunos que não repetem, os alunos que estão no ciclo adequado à sua idade têm valores iguais à média dos países da OCDE. Até produzimos mais excelência. Isto é, os nossos alunos do 7 º ano muito bons são melhores do que os muito bons dos outros países. Mas depois temos o peso dos que chumbam, dos que ficam retidos, que puxam os nossos resultados médios para baixo.

– Mas não defende que esses alunos deviam passar todos para melhorar as médias, pois não?

– Não, claro que não. O que significa é que a repetência devia constituir um espaço de trabalho efectivo para que eles recuperassem. O problema é que esses alunos nunca recuperam.

– Ficam para trás?
– Vão repetindo, ficam para trás e pesam nos resultados globais muito negativamente porque a repetência, de facto, na minha opinião, é facilitista porque não é um meio de os obrigar a estudar a mais e a aprender.

Esta simplista e redutora de interpretar o insucesso escolar no nosso país é especialmente confrangedora, porque revela, por um lado, enorme desconhecimento dos antecedentes e percurso histórico da escolarização em Portugal e no Sul da Europa comparativamente com paragens mais setentrionais, e por outro, uma assinalável pobreza teórica e interpretativa das características desse insucesso, isto para não falar dos enormes preconceitos que esta leitura do fenómeno contém.

Não me vou deter nas passagens especialmente caricaturais do discurso ministerial, como aquela de se colocar o aluno ao «cantinho da sala» ou de o «chumbo» do aluno ser a solução fácil. Como escrevi no post anterior o ridículo das afirmações chega como desmentido. E quem anda no terreno sabe como tudo isso não é verdade ou então resulta de uma generalização abusiva a partir de casos particulares, estudados por sociólogos convidados pelo ME para fazer estudos em meia dúzia de escolas escolhidas a dedo. Não é por acaso que quem chegou a essas conclusões, em case-studies recentes, partilha da mesma concepção simplista da ME em matéria de sociologia do insucesso.

Concentremo-nos apenas em três pontos fundamentais que me parecem revelar até que ponto esta visão «curta» das origens e características do insucesso escolar é extremamente prejudicial para a efectiva erradicação do insucesso real, mesmo se pode servir para forçar a erradicação do insucesso estatístico.

  • Antes de mais, MLR parece desconhecer que a escolarização de Portugal é um processo muito mais tardio e lento que o da generalidade dos países europeus, salvo raríssimas excepções, mesmo no contexto da Europa mediterrânica. A escola de massas atingida no Noroeste Europeu há um século ou mesmo mais, em especial nos países de matriz protestante, foi atingida entre nós há poucas décadas. Ao nível do Ensino Secundário é mesmo ainda um fenómeno em consolidação. MLR parece desconhecer que não podemos comparar algo em crescimento com algo que já foi objecto de maturação. A História, mesmo a da Educação, não se acelera a bel-prazer e essa é uma das lições que a análise dos indicadores educacionais portugueses desde finais do século XIX permite a qualquer pessoa que os olhe sem ser com lentes enviesadas.
  • Por outro lado, a caracterização do insucesso escolar nos moldes ultrapassados de alguma Sociologia da Educação parada entre os anos 50 e 70 não ajuda nada a resolver o problema. Nesta leitura que entre nós ainda tem muitos adeptos, em especial na esquerda intelectualmente paralisada, o insucesso é o resultado dos mecanismos de exclusão da Escola enquanto aparelho do Estado capitalista interessado em reproduzir as desigualdades sociais. Sei que é uma postura agradável a alguns sectores, mas há muito que esta perspectiva deu o que tinha a dar. Mesmo nos quadrantes mais à Esquerda, desde as teorias emancipatórias de Paulo Freire às da pedagogia crítica anglo-saxónica, a Escola também foi encarada como um instrumentos facilitador da mobilidade social, em especial no sentido ascensional. São conhecidos os fenómenos de sucesso escolar das minorias étnicas e culturais em países como os EUA ou mesmo a Inglaterra. Mas entre nós continuamos apegados à sociologice do coitadinho que tão maus resultados deu nos anos 90. O insucesso é culpa dos professores e não de uma ausência de referenciais éticos que promovam positivamente valores como o trabalho e o esforço. Pelo contrário, optou-se pela via da irresponsabilização e desculpabilização do insucesso. Os resultados estão à vista, mas parece que insistem na cegueira.
  • Por fim os preconceitos que distorcem fatalmente o olhar de MLR. São principalmente dois: o primeiro é contra os professores que considera optarem pela via fácil do «chumbo» dos alunos. Tivesse MLR de justificar a repetência ou bi-repetência de dois ou três alunos por turma, tendo 6, 7 ou 8 turmas e saberia que essa não é a solução fácil. Fácil é passar todos e chutar a bola para o campo adversário. O segundo preconceito é contra os próprios alunos: MLR parece pertencer àquela escola de pensamento que associa o insucesso escolar à vulnerabilidade social e económica. É uma associação tentadora e que até explica parte do insucesso. Mas não explica tudo e acaba por reduzir bastante as metodologias colocadas em campo para o combater. O insucesso não é um determinismo sócio-económico. Em muitos casos é o resultado de uma ausência de valores e oportunidades da sociedade que provoca em muitos alunos uma indiferença pelo seu percurso escolar. Não chegam uns quantos cartazes com o Figo ou o Cristiano Ronaldo a apelar a não sei o quê. É necessário mais. É indispensável que os jovens percebam que o sucesso não se conquista por fax ou em habilidades técnicas. Ou na base das negociatas de gabinete. Ou em artimanhas judiciais, nas quais nem se negam as tropelias, mas sim os meios de prova. Muitos jovens não encontram referenciais próximos «de sucesso» real resultante do sucesso escolar. E os professores, que podiam funcionar como modelos próximos, são dia a dia enxovalhados por políticos de terceira apanha, com problemas em assumir o seu próprio passado.

Mas querem combater o insucesso escolar, mesmo com base nessas «teorias dos coitadinhos»?

Então assumam que grande parte desse insucesso resulta do insucesso dos governantes nacionais nos últimos 30 e mais anos.

Se o insucesso atinge principalmente os mais pobres e desfavorecidos, então políticas de sucesso na área da economia conseguiriam arrancar Portugal à sua situação de perpétua semi-periferia o número desses pobrea e desfavorecidos diminuiria de forma radical (idealmente deixaríamos de ter uma proporção enorme de gente abaixo ou no limiar da pobreza e com níveis assutadores de endividamento) e com isso também o insucesso escolar.

Certo?

É que para serem coerentes com essa Sociologia da Educação Caridosa dos Pobrezinhos então devem admitir que a razão do insucesso radica – por exemplo – nos 150.000 empregos não criados.

Certo?

Ou estou a ver mal a teoria?