Da relevância política da portaria da bolacha Maria!

Se alguma vez tivéssemos de escolher um símbolo para a incontinência legislativa com que os sucessivos governos têm procurado melhorar a vida daqueles que definem como mais desfavorecidos creio que nada suplantaria a portaria da Bolacha Maria.
Dada à luz a 30 de Setembro de 1974, a dita portaria procurava aplicar os conceitos da luta de classe ao reino das bolachas e biscoitos, que é como quem diz criar um regime de preços máximos de venda para a bolacha Maria dado que esta, explicava o legislador, ao contrário de outros tipos de biscoi¬tos, era consumida “em especial pelas classes de menores rendimentos”. E assim, a 30 de Setembro de 1974, no preciso dia em que Spínola resignava e Costa Gomes era nomeado Presidente da Repúbli¬ca, um membro do Governo legislava impassível sobre os preços máximos da bolacha Maria e, em abono da verdade, diga-se também que da bolacha de água-e-sal e das tostas. Como o Governo caiu nesse mesmo dia, o legislador já não teve tempo para regulamentar sobre outros assuntos cruciais para a vida dos portugueses, tais como o univer¬so burguês do sortido húngaro e quiçá estabelecer quotas de acesso ao bolo de arroz. Mas pode essa preclara alma dar-se por satisfeita: o argumento da defesa dos mais desfavorecidos, sobretudo se engalanado dumas vestes de progresso, justifica toda a legislação em Portugal, incida ela sobre as bandeiradas dos táxis, a data do início dos saldos ou a distância mínima a que, na pesca amadora, os pescadores devem deixar as respectivas canas as das outras.
(…)
Por agora, e embora já em contagem decrescente para entrarmos nessas polémicas, o que ocupa as medidas sucessoras da portaria da bolacha Maria são os apoios escolares. Para este ano lectivo anunciam-se mais refeições gratuitas, mais livros gratuitos e um maior número de alunos abrangidos pelo princípio da gratuitidade. Em primeiro lugar conviria lembrar que não existe nada gratuito. E os primeiros a quem tal deve ser recordado são precisamente o Governo que se compraz, qual aristocrata caritativo, a anunciar tanta gratuitidade como àquelas organizações como o Fórum Não Governamental para Inclusão Social que nunca se sabe quem representam e muito menos o que fazem, mas que, imbuídas duma espécie de superioridade moral, exigem ciclicamente uma escolaridade obrigatória “realmente gratuita”. Todos aqueles livros e demais material, além da própria escolaridade em si mesma, custam muitíssimo dinheiro.
0 melhor apoio escolar é uma escola que funcione bem, seja exigente com todos os seus alunos e não trate aqueles que rotula como mais pobres – e que nem sempre o são na realidade – como crianças de quem há menos a esperar, tanto no comportamento como na avaliação. E naturalmente uma escola que seja respeitada para o que é essencial que os seus alunos saibam que custa muito dinheiro. Logo é um privilégio poder frequentá-la sem pagar. (Público, 9 de Setembro de 2008)

Agradecendo ao João Belo a imensa paciência para passar o pdf para ficheiro de texto utilizável, já que a imagem ficaria ilegível.