O 25 DE ABRIL OU O SENTIDO DA LIBERDADE

“A sociedade é produzida pelas nossas necessidades, mas o governo é produzido pelas nossas fraquezas” (T. Paine).

 

Quando olhamos hoje para Portugal e lastimamos a situação social, económica, política e cultural em que este se encontra, uma das maiores tentações é a de procurar logo “culpados”, “bodes expiatórios” para tentar aliviar a consciência individual e colectiva.

O plúmbeo 25 de Abril que ora se comemora tem indelevelmente essa marca de exercício ritual colectivo de culpabilização.  
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Na ditadura, apesar da indigência material e intelectual, não havia necessidade de grandes inquietações sobre o futuro; a medíocre existência individual e colectiva estava garantida pela mão paternal do poder, do estado: as decisões eram com “eles”, “mandava quem sabia ou podia”…
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Havia nisso uma espécie de libertação perversa e ao mesmo tempo inocente, nesse alijar de responsabilidades para cima dos ombros “dos que mandam”. Podiam até trocar-se piadas sobre os problemas quotidianos, motejar sobre “aqueles gajos lá do governo” – mas quem era visado eram sempre “eles”; era contra “eles” que nos podíamos dirigir da nossa posição “exterior”, liberta.
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Agora que “eles” já não estão no poder, que já não temos essa desculpa e também esse alívio, vemo-nos impiedosamente confrontados a assumir a vacuidade da nossa vida democrática e cívica quotidiana. Sartre, justamente, salientou o terrível fardo que é a liberdade. Porque quanto mais livres somos, mais responsáveis somos pelos nossos actos; se falharmos, só podemos culpar-nos a nós mesmos.
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Na complexa e difícil situação político-social em que o país está mergulhado, a grande questão que assalta o espírito de muitos portugueses é esta: enquanto cidadãos, sentem-se (ainda) livres, podem manifestar as suas opiniões, o seu protesto e descontentamento; mas, do ponto de vista colectivo, sentem-se impotentes para interferir efectivamente nos acontecimentos, por se aperceberem que essa liberdade não conduz à acção consequente, essa que poderia modificar as suas vidas de acordo com os seu anseios.
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A população é convidada a decidir, mas ao mesmo tempo apercebe-se de que não detém condições efectivas para o fazer, porque vê que a sua vontade e as suas expectativas não só não encontram a devida tradução nas políticas públicas – sobretudo nas económicas e sociais -, como são ostensivamente defraudadas por estas, observando os governantes arrogarem-se o direito de prometer medidas cujo sentido, depois, alteram a seu bel-prazer, escudados na retórica justificativa de “circunstâncias imponderáveis” ou de uma “interpretação” que só eles conseguem reconhecer do “interesse nacional”.

Em face disto, não nos poderemos admirar com o número cada vez maior de abstencionistas e de cidadãos que manifestam o seu cepticismo perante os ideais do regime democrático, a sua desconfiança perante as suas instituições e as suas lideranças?  

A representatividade e a legitimidade democráticas começam, assim, a ficar perigosamente erodidas, exibindo uma clivagem que atravessa o cerne do próprio regime constitucional saído do 25 de Abril de 1974.

Foucault referiu-se em tempos às “estratégias sem sujeito” utilizadas enquanto mecanismos de reprodução do poder. Mas hoje – e a situação que envolve o movimento dos “indignados” é a esse respeito por demais elucidativa – talvez estejamos em face do problema inverso: sujeitos reféns das consequências imprevisíveis dos seus actos, mas uma ausência de estratégia global para regular e conferir um sentido à sua interacção.
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O momento histórico que atravessamos constitui uma espécie de ocaso, que não sabemos se terá ou mercerá alguma aurora redentora, onde o evidente vazio deixado por respostas demasiados apressadas, de que as sucessivas ilusões, primeiro da “aceleração histórica” no PREC, depois do milagre da entrada na UE com Soares e o consequente deslumbramento cavaquista, ou, agora, da “revolução neoliberal silenciosa” de PC, constituem talvez os exemplos mais emblemáticos, obriga-nos agora a uma séria reconsideração da nossa vida e do nosso futuro.
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Doutrinas, valores, mentalidades ressentem a pressão dessa ausência e solicitam assim uma resposta diferente, e difícil, porque no tempo dos que nos querem sem ideologia nem alma, teremos que reinventar o sentido da política e dar outro fôlego à nossa existência colectiva.

Farpas