Por estes dias irei deixando aqui a versão inicial do capítulo sobre a Educação, na transição da Monarquia para a República, da minha tese de doutoramento. Não se afasta muito da versão final, mas é aquela que ainda encontro em Word (paz ao meu disco rígido do velho PC e alvíssaras pela pen que deve andar por aí escondida) e que me permite colocar aqui o texto em fatias, sem necessidade de formatar tudo de novo.

Desculpem lá, mas não estive para reconverter as notas de rodapé todas, porque…

Esta parte é principalmente sobre a situação no final da Monarquia, da qual já publiquei há tempos umas passagens. Notarão que muitas das questões permanecem, mais de 100 anos depois, actuais.

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1. O Fim Da Monarquia (1900-1910)

É no âmbito da questão social, nomeadamente do combate contra os privilégios e predomínio da Igreja no ensino, da luta pela ilustração das camadas populares no sentido da sua qualificação para um pleno exercício da cidadania, que surge o problema da necessidade instrução popular e do combate ao analfabetismo que colocava Portugal na cauda da Europa em termos educativos. O diagnóstico da situação e grande parte das estratégias tidas como necessárias para a solucionar (alargar a rede escolar, formar pessoal qualificado para as prover) era partilhado pelas diversas forças políticas em confronto e em luta pelo poder, fosse no âmbito do rotativismo monárquico, fosse mesmo ao nível da aparente oposição entre monárquicos e republicanos, só havendo alguma divergência quando se tratava das franjas sociais anarquistas mais radicais.

A separação das águas fazia-se em matéria de análise das causas do atraso e, mais ou menos indirectamente, dos protagonistas que era necessário afastar ou mobilizar para o efeito. Os republicanos atribuíam à excessiva ligação entre a acção do Estado e os interesses da Igreja a grande responsabilidade do atraso educacional e, acessoriamente, a uma errada concepção do papel da Escola na sociedade. Dessa forma, uma questão que podia ter funcionado como causa comum, acabaria por se tornar um dos tópicos de luta mais acesa na arena política. A propaganda republicana desde cedo identificaria na Educação um tema em que era fácil atacar a incapacidade dos governos monárquicos e tornara-a como matéria prioritária, como já vimos, pelo que no início do século XX o tema não era novo, nem a discussão sobre a melhor forma de resolver o problema existente. E os números pareciam estar do seu lado.

Os resultados do censo populacional de 1900 eram claros: a população portuguesa continuava esmagadoramente analfabeta e os progressos feitos desde o censo de 1864 não eram de molde a prever uma rápida resolução do problema, apesar do sensível aumento da oferta educativa, em termos do número de estabelecimentos de ensino e mesmo de despesa pública no sector. A Educação que era uma prioridade quase pacífica ao nível do discurso e transversal a grande parte do espectro partidário desde finais do século XIX, parecia uma causa muito difícil de ganhar. As perspectivas de futuro não eram as melhores, e apesar do voluntarismo retórico e legislativo, acabariam por ser confirmadas:

«Os números que representavam este desespero foram então muito citados. Entre 1870 e 1930, o número de professores primários aumentou 311% e a despesa do Estado com o ensino elementar, 955%. O resultado foi um aumento da alfabetização das crianças entre os 7 e os 14 anos, de 19,9% e 1900 para 29,8% em 1930.» [1]

Em 1900 existiam 74% de analfabetos com idade superior a 7 anos; em 1911, esse valor descera para pouco menos de 70%, em 1920 para cerca de 66% e em 1930 para 61,8%[2]. A verdade é que o esforço da República para expandir a escolarização e elevar o nível de alfabetização, demora bastante a notar-se na estrutura das despesas públicas. De acordo com os números tratados e seriados por Nuno Valério o que se passou foi, pelo contrário, a diminuição do peso do orçamento destinado ao Ministério da Instrução Pública de 4% para 2% do total, entre os anos de 1913-14 e 1917-18, apenas se dando ganhos significativos já na década de 20, quando se atinge com regularidade um valor a oscilar entre os 7% e os 9% das despesas com os vários ministérios e serviços autónomos[3]. Esse valor seria mantido durante quase duas décadas, só descendo no início dos anos 40 para os 5%[4].

O número de escolas oficiais, que era de 4665 no ano lectivo de 1901-02, subiria para 5552 em 1909-10 e para 7063 em 1918-19 (embora nesse ano cerca de 500 não funcionassem por diversos motivos, desde questões de segurança a falta de provimento da cadeira[5]. A rede escolar ia-se densificando e chegando a cada vez mais pontos do país, mas nem sempre esse esforço correspondia a ganhos efectivos e contabilizáveis nas estatísticas oficiais.

Para o ano lectivo de 1924-25, o Anuário Estatístico apresenta-nos um total de 6850 escolas oficiais, das quais funcionaram 6479 (94,6%), cobrindo cada uma, em média, uma área de pouco mais de 14 km2, embora com fortes oscilações, mesmo se tomarmos como base apenas o território continental. Nos distritos do litoral norte, as escolas cobriam áreas bem mais restritas (c 4 km2 no distrito do Porto, pouco mais de 6 no de Braga e 7,6 no de Aveiro) do que no sul (58 km2 no distrito de Évora e 80 no de Beja)[6].

As razões apontadas, ontem e hoje, para o insucesso na luta contra o analfabetismo e para a lentidão dos ganhos eram várias, como o seriam ao longo de grande parte do século XX, nem todas assacáveis ao poder política e à sua muito criticada ineficácia. Apesar de tudo, a oferta educativa ia aumentando, mesmo se nem sempre nas melhores condições. A procura, no entanto, nem sempre era aquela que os estudiosos do fenómeno e muitos políticos e polemistas contavam que existisse.

Se em muitos pontos do país se faziam movimentações destinadas a conseguir a autorização do Poder Central para a criação de uma nova Escola, para a conversão ou desdobramento de escolas, não é menos verdade que em muitos locais, apesar do recenseamento escolar apresentar um número de crianças mais do que suficiente para justificar esses pedidos, quando as escolas eram visitadas pela inspecção encontravam-se semi-desertas ou apresentavam níveis de frequência bastante baixos, que as estatísticas facilmente demonstram

Os exemplos que se podem recolher, de forma avulsa e mesmo não sistemática nas inúmeras caixas de documentação do Ministério da Instrução Pública, para provar os dois pontos de vista antagónicos são inúmeros e a sua utilização depende muito da perspectiva com que se parte para a sua exploração e análise.

Vejamos um caso particular, seleccionado apenas porque corresponde a um dos primeiros concelhos elencados nas estatísticas oficiais e porque alguma da informação que se refere à criação de escolas logo no dealbar do século XX se encontra em parte agrupada. Trata-se do concelho de Arouca, no concelho de Aveiro.

Nas caixas nº 48 e 49 do referido fundo documental, é possível encontrar documentação relativa à autorização de criação, no ano de 1901, de escolas três masculinas entre 19 e 27 de Julho, respectivamente no lugar da Fonte d’Ouro, freguesia de Tropeço[7], na freguesia de Escariz (processo iniciado pela Junta da Paróquia ainda em 1898, em sessão de dia 23 de Janeiro, seguindo-se deliberação da Câmara de Arouca em 21 de Março de 1899) [8] e no lugar do Casal, freguesia de Chave[9], assim como de uma escola feminina, em 9 de Setembro, para servir as populações das freguesias de Canelas e Espiunca[10]. Na sequência de um processo iniciado também em 1901 é ainda autorizada em 28 de Maio de 1902 a criação de uma escola masculina na freguesia de Roças[11]. Este fluxo de criação de escolas corresponde praticamente a 50% das escolas em funcionamento no momento da implantação da República quase uma década depois e parece indiciar uma forte pressão por parte da procura sobre a oferta educativa, em especial no sector masculino. Mas quando se analisam os dados disponíveis para o ano lectivo de 1909/10, o que se constata está longe de provar isso, pois dos 1100 rapazes recenseados em idade escolar, apenas 644 se encontram recenseados (abaixo dos 60%) e 583 revelam uma efectiva frequência às aulas (90,5% dos matriculados mas apenas 53% dos recenseados). E a situação não iria melhorar, pois em 1914/15, os números relativos às matrículas e frequência mal tinham variado (643 e 581, respectivamente), apesar do recenseamento ter subido para os 1309 rapazes em idade escolar[12].

Mas no entanto a produção legislativa em torno da Educação continuaria intensa, quer na década final da Monarquia, quer em especial com a instauração da República. A concepção da legislação como alavanca da mudança social e de transformação do atraso em progresso seria uma das permanências mais notórias ao longo de todo este período e, em termos globais, do primeiro terço do século XX. Em finais de 1901, nas vésperas do Natal, o governo de Hintze Ribeiro procede, por entre variada legislação, a mais uma reforma do Ensino Primário, que passa a ter quatro classes, sendo que as primeiras três correspondiam ao 1º grau, obrigatório, e a última a um 2º grau que devia ser cumprido por quem pretendesse ingressar no ensino liceal, Os estabelecimentos de ensino eram classificados em centrais, podendo ser masculinos ou femininos, e paroquiais, os únicos que poderiam ser mistos. Em conjunto com estas alterações, era ainda introduzida legislação que alterava a orgânica da Direcção-Geral da Instrução Pública, criando uma Inspecção Sanitária Escolar e uma Direcção Técnica das Construções Escolares[13]. As motivações eram as melhores, pois procurava dar-se resposta ao que se afirmava ser o estado deplorável tanto de muitos dos edifícios usados como escolas como de boa parte da população estudantil, cuja situação sanitária preocupava os espíritos mais permeáveis às teorias antropológicas em voga sobre a ascensão e definhamento das raças.

Neste pacote legislativo, avulta ainda o que alguns autores consideram o início da formação profissional de docentes para o Ensino Secundário, com a criação do Curso de Habilitação para o Magistério Secundário. Através de dois decretos (nºs 4 e 5 de 24 de Dezembro de 1901) procedia-se a uma sistematização dos requisitos formais exigíveis, em termos de qualificação académica, para a docência no Ensino Liceal. Se no caso da área das letras isso passou por uma reformulação do plano de estudos do já existente Curso Superior de Letras, no caso da área das Ciências (Matemática, Ciências Físico-Químicas, Ciências Naturais) isso exigiu que se regulamentasse em Outubro do ano seguinte (Regulamento de 3 de Outubro de 1902, publicado a 10 no Diário do Governo) a existência de um Curso de quatro anos, sendo que os três primeiros eram realizados nas instituições universitárias da especialidade e o último, de natureza pedagógica, deveria decorrer em Lisboa, no Curso Superior de Letras[14].

Quanto ao Ensino Primário, António Nóvoa sistematiza em seis pontos a reforma de 1901: obrigação de frequentar a escola, gratuitidade do ensino, centralização do sistema escolar, institucionalização do ensino normal, criação de um corpo permanente de inspectores e liberdade de ensino[15]. O mesmo autor salienta o paradoxo desta reforma, como de muitas outras pode acrescentar-se sem risco de errar, que era a contradição insanável entre a sua correcção formal e os conhecimentos que os seus proponentes demonstram sobre o que de melhor se fazia além-fronteiras, por um lado, e a impossibilidade de a implementar verdadeiramente no nosso país, com os meios então disponíveis. A reforma suscitaria, também, os sempre habituais movimentos de contestação, por esta ou aquela razão, mas essa já parecia ser uma condição sine qua non de qualquer reforma em Portugal, educativa ou outra. Neste caso específico, grande parte das críticas do professorado recairia no facto de os docentes continuarem a ser dos funcionários do Estado pior pagos, atendendo à natureza da sua função e qualificação profissional. Em 1907, quando se procede à reorganização do Conselho Superior de Instrução Pública e da Direcção geral da Instrução Pública, isso é feito admitindo a existência de movimentos favoráveis a novas reformas dos ensinos primário e secundário e como estratégia para, adiando tais reformas que pareciam incontornáveis, melhor as preparar:

«Fácil teria sido ao Governo, cedendo á pressão de vozes impacientes, que lhe lembram a urgência de reorganizar o ensino primário e o secundário, apresentar para já trabalhos integraes de refundição dos diplomas que actualmente regem estas duas grandes e importantes divisões da instrucção publica.

(…) Ora as reformas de que necessita o ensino nacional poderão, approvada esta proposta de lei, ser preparadas por uma administração central não já, como até aqui, exclusiva e asphyxiantemente burocrática e escravizada á politica, mas dotada de órgãos que lhe imprimam independência, garantias de justiça e carácter pedagógico; e, uma vez decretadas, cessará o perigo tanta vezes experimentado e censurado de ficarem letra morta (…).»[16]

Mas, por apurado que fosse o diagnóstico dos estrangulamentos, muita letra morta continuaria a ser lavrada. Na prática, por muitas reformas e remendos às reformas que fossem sendo acrescentados, muitos dos processos continuavam similares ao que eram e, quando recorremos aos dados estatísticos, constatamos uma evidência já notada e que adiante não deixará de (não) nos surpreender: as linhas de evolução traçadas quando se analisam aspectos como a expansão da rede escolar ou a evolução de matrículas no ensino primário seguem o seu curso sem grandes perturbações e são quase insensíveis à azáfama legislativa que, pela sua própria incontinência, se torna cada vez menos eficaz na alteração das práticas quotidianas.

Um aspecto essencial para a expansão da rede escolar e para a adequação da resposta das autoridades às necessidades concretas e às solicitações das populações era o processo burocrático que era necessário desenvolver para a criação de novas escolas e esse procedimento não se alterou profundamente, na sua essência, ao longo das últimas décadas do regime monárquico, nem foi agilizado de forma sensível nas reformas que se sucederam ao longo do mesmo período. Consultar o processo de criação de uma escola em 1905 não é entrar numa realidade burocrática muito diversa da criação de uma escola vinte anos antes. As principais diferenças entre o que acontecia em 1875, em 1890 e 1905 passavam fundamentalmente pela forma de financiamento do novo estabelecimento de ensino e a evolução, nesse aspecto, nem sempre foi de molde a eliminar situações de potencial conflito e bloqueio, muito pelo contrário. O vaivém de ofícios entre as diversas instâncias envolvidas no processo é uma permanência e chega a ser desesperante quando existiam problemas que levavam à reprovação do edifício disponível por parte da inspecção, fosse por inadequação da sua localização, das suas condições sanitárias ou pela insuficiência de mobiliário e material.

Um dos processos mais caricatos que é possível acompanhar nas numerosas caixas sobre criação de escolas no início do século XX culmina em meados de 1909 com o seguinte despacho, cuja minuta está apensa a um gordo maço de documentos:

«Tendo em nota o respectivo processo e conformando-me como o parecer do Conselho Superior da Instrução Publica:

Hei por bem decretar que a escola primaria para o sexo feminino na freguesia de pedroso, do Concelho de Villa Nova de Gaya, districto do Porto, creada por decreto de 30 d’Outubro de 1900, seja transferida para a sua sede no logar de Moeiro, da referida freguesia,

O Ministro e Secretario d’Estado dos Negócios do Reino, assim o tenha entendido e faça executar.»[17]

Este tinha sido realmente «um caso muito simples e que as circunstancias complicaram» como se afirma em outro documento do dito processo. Como se refere, tudo remontava a 1900, ou melhor ao ano de 1899, quando uma petição com 70 assinaturas é entregue na Câmara de Gaia, corria o mês de Outubro, com o objectivo de solicitar a criação de uma escola feminina na dita freguesia de Pedroso, petição essa que é aceite e reencaminhada para a Direcção Geral da Instrução Pública onde dá entrada no dia 19 de Janeiro de 1900.

Entre outras diligências, passíveis de reconstituir a partir da documentação disponível, a Junta da Paróquia local aprova em 25 de Fevereiro o pedido para que a escola se localize em Carvalhos, por ser o mais populoso, o que é levado à sessão da Câmara de Gaia do dia 1 de Março. Em Maio é feita uma vistoria à casa que se destinava a acolher a escola, agora no lugar de Figueiredo, por não existir nenhuma disponível em Carvalhos, com a presença do administrador substituto do concelho, do subdelegado de Saúde e do professor de Perosinho, enquanto representante do comissário distrital da Instrução Pública. Em 25 de Agosto o Comissariado da Instrução Pública do Porto dá o parecer favorável á criação da escola, sendo formalizada a aprovação em documento datado de 8 de Outubro. Em 25 de Outubro é elaborado o parecer favorável do Conselho Superior de Instrução Pública sobre a mesma matéria usando-se como fundamentos, entre outros, o recenseamento de 525 raparigas em idade escolar e a inexistência de uma escola feminina na freguesia; para o facto de se deslocar a instalação da casa do lugar de Carvalhos para o de Figueiredo, alega-se a falta de casa disponível em Carvalhos, enquanto em Figueiredo se econtrou uma com uma sala de dimensões e alojamentos para o(a) docente, acrescendo ainda que a Câmara de Gaia se afirma disponível para proceder ao equipamento da escola. Pelo meio de tudo isto, percebe-se que este edifício é do mesmo proprietário de um terreno existente em Santa Marinha onde a Junta de Paróquia pensara ser possível instalar inicialmente a escola feminina, sendo que o referido proprietário demonstra maior interesse no aluguer do edifício do que na disponibilização do terreno em causa[18].

Por fim, no acima citado decreto de 30 de Outubro, é determinada a criação de uma escola para o sexo feminino «na freguezia de Pedroso, concelho de Villa Nova de Gaia, districto do Porto» e aqui é que todo o imbróglio vai ter a sua origem. A indefinição sobre a localização exacta do novo estabelecimento de ensino – freguesia de Pedroso – conduz a uma série de conflitos que se prolongam durante quase uma década.

Em 1906, o processo é sumariado numa exposição da Câmara de Gaia, que surge na sequência de um decreto do Governo em que se acusa a autarquia de ter exorbitado das suas competências ao instalar a escola, afinal, no lugar de Moeiros e não onde originalmente se determinara. Depois de referenciar brevemente o que se passara em 1900, descreve-se o processo que em 1901 levaria o Ministro do Reino a contrariar em Agosto o arrendamento de uma casa em Figueiredo por 70$000 anuais num contrato trianual, em que o último ano seria gratuito, e a recusar em Setembro a oferta de uma segunda casa também em Figueiredo, por falta de condições higiénicas. O problema é que, na sessão de Câmara de 18 de Junho desse ano, em que se deliberar o arrendamento da casa em Figueiredo (e não no lugar de Santa Marinha como mais tarde vai surgir em alguns documentos deste processo) a António Domingues Guerra, tinha sido lido um requerimento de Maria Augusta de Sousa Carvalho em que era oferecida a título gratuito por três anos uma casa para funcionamento da escola em Moeiros, na mesma freguesia de Pedroso.

Perante a decisão do Ministro do Reino, seguida da ordem do Governador Civil do Porto para que a Câmara de Gaia retirasse a mobília colocada na casa inicialmente escolhida em Figueiredo, a Câmara de Gaia acaba por optar pela solução de Moeiros, onde a Escola viria a funcionar gratuitamente até 30 de Junho de 1904, arrendada nos dois anos seguintes, arrendamento esse que seria renovado pela Cãmara em 15 de Março de 1906, cumprindo o prazo de 90 dias de antecedência sobre a data em que expirava o anterior contrato bianual com a proprietária. Só que, entretanto, chegara aos serviços centrais uma queixa da Junta de Paróquia de Pedroso contra a instalação da escola em Moeiros e o pedido para que ela fosse transferida para a localização originalmente proposta, que seria Santa Marinha, o que em boa verdade nenhum documento especificara concretamente.

Em 16 de Agosto de 1906 é, pois, decretada a transferência da escola de Moeiros para Santa marinha, o que motiva acesos protestos da Câmara de Gaia que afirma não haver casa disponível em Santa Marinha, sendo o lugar ermo, para além de que assim ficará obrigada a pagar duas casas em locais diferentes para o mesmo estabelecimento de ensino. O resultado vai ser que a escola acabará em Figueiredo, o que em 1908 suscita nova intervenção da Câmara de Gaia para que regresse para o lugar de Moeiro pois a afluência decrescera de 102 para apenas 39 alunas com a transferência ralizada, atendendo ás distâncias que agora eram obrigadas a percorrer.

«Sem querer a Camara Municipal de Gaya, apreciar as informações que então podessem ter sido fornecidas ao Conselho Superior de Instrução Publica para basear o seu aprecer pela transferencia da escola, cabelhe o dever de expôr que no mencionado logar de Santa Marinha não existe casa alguma que posa servir para uma escola e que por isso mesmo nunca ella alli esteve installada, o que levou o Snr. Governador Civil de então, para dar cumprimento áquelle despacho, a ordenar a mudança da escola para o lugar de Figueiredo, distante d’aquelle mais de um Kilometro.»[19]

Mais de seis meses depois, ainda se andam a realizar reuniõs entre o sub-inspector do Círculo Escolar de Vila Nova de Gaia e a respectiva Câmara para dar solução ao problema da localização da escola. Em 17 de Dezembro de 1908, o mesmo funcionário devolve aos serviços da Inspecção da 3ª Circunscrição Escolar toda a documentação (croquis e mapa com as distâncias percorridas pelas alunas) e resume assim a sua visão de todo o processo, que é um emaranhado de necessidades e interesses, públicos e privados:

«Quando se creou a escola e a pedido da Camara, foi escolhido o local de S.ta Marinha ou Lamaçaes para alli ser construido o edificio escolar, em terrenos de que é e era proprietario, o que o é da casa em que está installada a escola actualmente em Figueiredo.

Depois, porque a este convinha mais que a escola se construisse, embora tambem em terreno seu, em Figueiredo, onde ele e sua familia residem, do que em Santa Marinha ou Lamaçaes, construiu elle, para arrendar depois á Camara, um edificio, arrendando-lho realmente e instalando-lhe alli a escola, a despeito do decreto que a creou (…) e a despeito mesmo do prejuizo para a instrucção da freguezia, como fica demonstrado no meu officio que faz part integrante dos documentos que este acompanha.

Depois, sem que se possa saber a dilligencias de quem, a escola foi mudada para o lugar de Moeiro ou Carvalhos – realmente o centro mais populoso da freguezia – até que ~, no tempo em que era Ministro do Reino e Presidente do Conselho o Exmo. Sr. João Franco, a escola foi, por despacho de Sua Exª mudada de novo para Figueiredo, e desde então lá se conserva com enorme prejuízo para o ensino das creanças do sexo feminino da freguezia de Pedroso, pois a escola se acha actualmente installada no logar mais ermo da freguezia e no de menos população.»[20]

E passados mais uns meses, no Diário do Governo nº 90 de 26 de Abril de 1909, lá vem novo decreto repor tudo na forma original, mais de nove anos depois da Junta de Paróquia ter despoletado o processo de criação desta aziaga escola feminina.

O que se conclui de tão controverso, obscuro e prolongado processo é que o choque entre as decisões das várias instâncias envolvidas no processo (Junta de Paróquia, Câmara Municipal, Governo Civil, Ministério do Reino, mas não só) resultam de uma enorme falta de articulação entre os vários níveis de poder, de falta de transparência e rigor nas informações veiculadas de instância para instância e de se constatar, por um lado, um evidente desconhecimento das condições concretas locais por parte do aparelho do Estado Central e, por outro, de uma certa permeabilidade das autoridades locais a interesses particulares e de uma tendência para contornar as incompletas decisões legais decretadas a nível central.

A descentralização era e seria sempre uma miragem, mesmo com o financiamento local das escolas herdado da legislação de Rodrigues Sampaio. O aparelho central do Estado desconfiava da bondade e do rigor dass autoridades locais, enquanto estas se queixavam da ignorância daquele. Em 1899, o deputado Cristóvão Pinto apresentaria uma proposta no sentido de transferir mais competências para as instâncias locais na área da Educação, que ele encarava como a via correcta para uma descentralização do funcionamento da sociedade portuguesa, sendo seu objectivo:

«Que as juntas geraes e os municipios sejam auctorisados a subsidiar os estabelecimentos locaes de ensino que, fundados e sustentados por esforço ou empreza particular, mostrem terem mais de um anno de existencia, que o seu ensino esta em boas condições, que as receitas compensam as despezas, e que é regular a sua gerencia administrativa e financeira (o que tudo será verificado n´um exame official, feito pelo inspector technico competente, delegado do governo), comtanto que a concessão do subsidio não exceda á importancia equivalente a um terço da despeza do estabelecimento, e as mesmas corporações provem que ficam assim alliviadas do encargo de sustentarem exclusivamente por sua conta os estabelecimentos similares que teriam de crear e manter para a satisfação das exigencias da instrucção publica local.

Eu digo a v. exa. e á camara o motivo por que insisto n´este ponto, e é este o fundamento da outra proposta connexa, que acabei de ler. É para que essas corporações possam tambem livremente fomentar nas respectivas localidades a criação de escolas particulares, com economia para os seus cofres e para os cofres do estado. Sou tão convicto partidario d´esta ideia, que prefiro mesmo a descentralisação do ensino á dos serviços da administração, porque, na minha opinião, como o outro dia tive occasião de dizer, o primeiro passo para a verdadeira descentralisação portugueza, é a transformação da educação nacional; e o meio seguro de realisar esta, transformação, é a descentralisação e a liberdade da administração no ensino publico.»[21]

O destino desta proposta seria o mesmo de muitas outras, perdendo-se nas comissões respectivas e em infrutíferas discussões que nada alterariam às práticas correntes. O mesmo aconteceria com a curta proposta de lei apresentada por Queirós Veloso na sessão de 29 de Agosto de 1908, na qual pretendia que se desse prioridade à criação de Escolas para as quais existisse um qualquer legado ou donativo particular, visto que o Estado continuava a gastar o que ele considerava ser uma quantia insignificante do seu orçamento na área da Educação, não dando, por outro lado, aplicação, aos avultados contributos de particulares para a criação de novas escolas:

«Todos sabem que o orçamento da instracção primaria é mesquinho e constituido na totalidade por escolas para as quaes concorreram as camaras municipaes.

O Estado dá para o respectivo orçamento uma verba insignificantissima. Por outro lado sabe-se que ha falta de edificios escolares apropriados. São rarissimas as escolas existentes no país que possuem condições hygienicas e pedagogicas.

(…)

Apesar de Portugal ser um país pobre, onde não abundam as fortunas, os donativos recebidos pela Direcção Geral de Instrucção Publica, desde 20 de fevereiro de 1902 até agora, representam em dinheiro a somma de 310:931$535 réis.

Alem disso foram pagos 16 edificios escolares de instrucção primaria, alguns com quintaes e terrenos annexos, e estão para ser recebidos, dependendo de certas formalidades, e sobretudo de certas clausulas testamentarias, réis 14.4:061$338. Quer dizer num país pequeno e pobre, como o nosso, os donativos escolares em seis annos representam a quantia de 500 contos de réis. Isto é assombroso para Portugal.

Succede que, de todos estes donativos, 132:030$340 réis não teem applicação alguma. Este dinheiro deu entrada na Caixa Geral de Depositos. Falta para a construcção de certos edificios uma pequena quantia a acrescentar pelo Estado e por isso essas escolas não teem sido construidas. Em compensação teem sido construidas algumas, para as quaes não havia legado ou verba de especie alguma.» [22]

Mas a questão da descentralização da gestão do sistema educatico ou, pelo menos, da rede escolar permaneceriam no período republicano[23], assim como a correcta e atempada aplicação das verbas disponíveis era apenas um entre muitos problemas; a opacidade de todo o sistema parecia ser imune à regulamentação legislativa. Na sessão de 29 de Outubro de 1906 da Câmara dos Deputados trocar-se-iam de razões o Ministro do Reino João Franco e o deputado Abel de Andrade, Director-Geral da Instrução Pública entre 1902 e 1906, recentemente demitido. As acusações esgrimidas nos dois sentidos, revelam bem como todo o sistema estava corroído até ao mais alto nível.

João Franco, quando inquirido sobre as razões da demissão, optaria por uma abordagem inicial não muito agressiva para o seu interlocutor, refugiando-se em considerações algo vagas e gerais:

«Foi só depois de ter conhecimento de grande numero de irregularidades, e das continuas faltas de cumprimento da lei, que se davam nos serviços da instrucção publica, que vi ser absolutamente impossivel manter á frente d’esses serviços um homem intelligente e trabalhador – não o posso negar hoje porque sempre o reconheci, e foi mesmo por essas qualidades que entre nos se travaram relações – mas a quem faltavam aquellas qualidades absolutamente indispensaveis, para em Portugal, neste momento, poder desempenhar aquelle alto cargo, hoje que a reforma é quasi mais necessaria nos costumes do que nas leis.»[24]

Só que quando instado de novo por Abel de Andrade para especificar as qualidades necessárias para o (não) desempenho do lugar, dispararia sobre o antigo Director-Geral:

«São as que derivam de tudo que acabo de ennunciar: illegalidade constante; preterição sistematica de direitos; o arbitrio substituindo a justiça; tudo isto provado constantemente nos factos de que tenho falado: – professores atrozmente perseguidos; professoras transferidas contra sua vontade e lesadas nas suas garantias, sob proposta da direcção geral; processos organizadas, como o das festas de maio e o do congresso pedagogico, sem o mais pequeno respeito pelas formulas, sem programma approvado; comprando-se livros que não haviam sido approvados em concurso; emfim. Sr. Presidente, um completo desrespeito pela lei, a nenhuma consideração pelos direitos de terceiros, o favoritismo e o arbitrio constituindo as normas da Direcção Geral da Instrucção Publica, quando aquelle Sr. Deputado ali estava.»[25]

E João Franco concretizaria as acusações exemplificando situações de desmando verificadas durante o mandato do ex-Director-Geral, as quais justificavam laragemente o seu afastamento do lugar:

«Pode um director geral ficar absolvido, se disser ao Ministro que qualquer professor, qualquer individuo não concorreu, mas pode ser despachado? Como pode ser despachado se não concorreu? ha algum Ministro que possa obrigar alguem a pôr o seu nome em um despacho d’esta natureza? .

Foi, portanto, o Sr. Deputado, a quem respondo, demittido por haver abusado da confiança em materia de serviço publico, que é o que diz a lei; e é inquestionavelmente um abuso desconfiança, para o pais, o não observar as leis que elle tem para se reger, porque a lei não é a vontade dos Ministros.

Note V. Exa.: no primitivo despacho estava Escola Districtal de Vianna do Castello, e depois foi necessario pôr Escola Normal do Porto; mas, como o nome era comprido e não cabia nessa linha, deixaram só ficar Porto.»[26]

Abel de Andrade, perante esta investida, defender-se-ia de uma maneira que dificilmente se poderá considerar particularmente eficaz ou solidária para com o ministro que o tutelava por ocasião dos acontecimentos descritos:

«Para essas três escolas foram despachados tres professores. No dia seguinte, recebendo ordem do Sr. Ministro para que, em logar d’esses, fossem despachados outros, ordenei á repartição respectiva que se organizassem novos processos. Na repartição, como o serviço era muito, pois se tratava das disposições testamentarios – tive até o cuidado de verificar que, nesses dias, se organizaram uns cento e tantos processos – e como isso importava o fazer seis processos, tres de annullação dos anteriores, e tres de nomeação, objectaram-me que seria mais rapido rasurar nos processos os nomes, substituindo-os. Eu, na minha defesa, chego até a minuciosidade de indicar os individuos que tiveram interferencia nesses processos. Publicaram-se então, como rectificação, mas com perfeito conhecimento do Ministro, a quem pedi autorização para o fazer. Se a commissão procurar bem, ainda ha de encontrar mais processos nessas condições. Eu digo a razão porquê. Entendeu-se que era mais decoroso attribuir isso a um erro da repartição, do que mostrar a versatilidade de um Ministro, que era um dia despachava num sentido, e no seguinte mudava de opinião.»[27]

A troca de comentários que se seguiria, e que aqui se transcreve demonstra bem como tudo se passava nos corredores ministeriais e da administração de topo no sector da instrução pública:

«O Orador [João Franco]: – V. Exa., Sr. Presidente, acaba de ouvir o final da interrupção do Sr. Deputado, a quem estou a responder. Quer dizer: compromettiam-se estas irregularidades para que se não soubesse que o Ministro despachara hoje um, amanhã outro.

O Sr. Abel de Andrade: – Creio que V. Exa. está argumentando com sinceridade. Appareceram esses despachos no Diario do Governo como errata.

O Orador: – Uma errata do nome de Maria José para Maria Joaquina era admissivel; mas uma errata do nome de Maria José para Antonio Francisco é que se não admitte.

O Sr. Abel de Andrade: – Em todos os Ministerios se faz o mesmo.

O Orador: – Mas se os primeiros que vêem publicados no Diario do Governo, apresentassem um requerimento pedindo que lhes dissessem o que havia a seu respeito, pergunto: o que se lhes havia de responder?

E disse o Sr. Deputado que isto se fazia, rasurando as folhas dos processos e publicando-os, não em um dia só, mas intervallados, quando já não era Ministro o Sr. Hintze Ribeiro, e que, se isto se praticava, era tão só para que não desse a impressão de que o Ministro mudava de opinião, de um dia para o outro!»[28]

Esta longa sequência de citações, às quais ainda falta um esclarecimento prestado pelo Conde de Penha Garcia sobre mais uma sequência de irregularidades relativas a permutas de professoras[29], serve apenas para exemplificar como o funcionamento do sistema de provimento dos lugares era perfeitamente vulnerável às arbitrariedades mais gritantes e às irregularidades processuais mais escandalosas, mesmo ao nível mais alto da hierarquia político-administrativa.

Se é verdade que o regime republicano pretendeu, pelo menos no plano das intenções, alterar o insustentável peso da burocracia, isso acabaria por ser negativamente compensado pelo agravar da conflitualidade política, quando existia um desalinhamento de interesses entre as elites locais tradicionais e os protagonistas da nova situação. Para além disso, o afastamento compulsivo de alguns professores por colaboração estreita com o regime anterior ou pela adesão a movimentos de resistência à República, assim como o corte radical realizado quanto à presença da Igreja no sistema educativo público e de elementos do clero na classe docente ao serviço do Estado, foram factores importantes de perturbação a nível local e constituíram-se como obstáculos à implementação das políticas educativas delineadas pelo Poder Central ou à satisfação, a esse nível, de algumas reivindicações com origem em elementos tidos como adversos ao novo poder.

Mas voltando ainda ao período final da Monarquia, três anos depois das mudanças no Ensino Primário de 1901, viria a reforma do Ensino Secundário, muito pressionada pela opinião pública e alguma imprensa, menos de uma década volvida sobre a protagonizada por Jaime Moniz, com o ministro Eduardo José Coelho a ceder à principal reclamação, aligeirando a carga horária a que os alunos estavam sujeitos e, em simultâneo, a introduzir a disciplina de Educação Física esquecida anteriormente.

O que não impediria que continuassem a verificar-se críticas de diversa ordem sobre o Ensino Secundário e que voltassem a existir novos projectos de reforma como o apresentado pelo deputado Francisco Miranda da Costa Lobo na sessão de 11 de Agosto de 1909. Para ele, a orientação da reforma de Jaime Moniz continuava presente nos estudos secundários e a legislação introduzida por Eduardo Coelho não a modificara na sua natureza essencial, pelo que era preciso alterar uma situação que ele descreve como caótica, em virtude da falta de uma acção fiscalizadora:

«Geraes reclamações instam por uma nova organização do ensino da instrucção secundaria. Exige uma immediata reforma o perigo a que estão expostos o desenvolvimento physico e a mentalidade das gerações academicas.

Pondo de parte tentativas criteriosamente preparadas, como foi a reforma de 1880, pretendeu a reforma de 1894 varrer o passado com uma penada, e substituir á patria portuguesa uma imitação deturpada da nação germanica.

As consequencias condemnaram immediatamente tão errada orientação. Repetidas e justificadas queixas se fizeram ouvir, sempre abafadas com a desculpa de que não era comprehendida a reforma, de que não havia pessoal para a executar. Mas admittida esta defesa, mesmo neste campo, para que servia?

Comtudo ainda hoje, decorridos quinze annos, continuamos debaixo do dominio da organização de 1894, embora, com as melhores intenções, ligeiramente modificada pela reforma de 1905.

Sobre todos os defeitos, um capital existia na reforma de 1894: a pretensão de monopolizar o ensino secundario nas mãos do Estado, sem que este se encontrasse habilitado, com pessoal idoneo, sem se obtemperar com medidas efficazes a esta falta. E assim succede que ainda hoje o ensino secundario é entregue, em grande parte, a professores provisorios, cuja capacidade é desconhecida, cujo interesse pela instrucção é problemático, pretendendo alguns encobrir a sua deficiencia com exagerados e descabidos rigores e incomprehensiveis exigencias.

Tem faltado uma constante inspecção á maneira como correm os serviços. E assim se tornou o ensino secundario num chãos de difficuldades, onde naufragam os melhores organismos e intelligencias robustas, não podendo modificar esta apreciação raras excepções que a tudo resistem.» [30]

O diagnóstico continua a ser sempre o mesmo: orientação errada das reformas feitas, incapacidade de a implementar com os meios disponíveis, ausência de controlo sobre a sua execução, capacidade discutível dos meios humanos. Todos parecem partilhar a mesma a opinião sobre uma situação que, ou permanecia imutável, ou mudava sempre no sentido errado. A sensação que é de uma constante crise sem solução viável, exequível ou adequada à realidade portuguesa. Os congressos pedagógicos que se tentam realizar, ou que chegam a concretizar-se, enveredam pelo mesmo caminho: diagnosticam os males, afirmam a necessidade premente de se estudarem as melhores soluções para os ultrapassar, alinham mesmo algumas propostas mas tudo permanece na mesma, mesmo quando parece mudar.

Por iniciativa da Liga Nacional de Instrução, organização de origem maçónica, são quatro os Congressos Pedagógicos que se realizam em Lisboa entre 1908 e 1914[31]. No primeiro deles, são dois os objectivos que se consideram fundamentais para melhorar a realidade educativa nacional: combater o analfabetismo e transformar os processos e métodos de ensino, por se acharem desajustados os que então vigoravam[32]. Claramente alinhado com a propaganda republicana na área educativa, o programa destes Congressos e da própria LNI teriam que em 1912 e 1914 inflectir em parte a sua postura crítica, mesmo mantendo a ideia central do combate ao analfabetismo, e acabariam por discutir outro tipo de questões, como a educação física e o ensino artístico e profissional. Por outro lado, a excessiva colagem ao republicanismo maçónico, uma ligação menor ao professorado enquanto classe e uma certa dispersão dos elementos organizadores e participantes, motivariam diversos tipos de críticas sobre as motivações[33], natureza e impacto destas iniciativas, que nem sempre conseguiriam influenciar decisivamente a acção do poderes legislativo e executivo.

Mas a partir de 1906 e até final da Monarquia Constitucional, a legislação em matéria educativa restringir-se-ia quase por completo a questões relacionadas com as possessões coloniais e à alteração de um ou outro ponto da legislação em vigor. Seria com a mudança de regime que o afã legislativo voltaria e com redobrado vigor, motivado quer pela necessidade de expurgar o sistema educativo dos males que a propaganda republicana há muito lhe identificava, como de tentar edificar uma nova estrutura adequada aos princípios ideológicos do novo regime.

(tem continuação…)


[1] Rui Ramos (1993), pp. 51-52.

[2] Oliveira Marques (1991), pp. 519-520.

[3] Nuno Valério (1994), pp. 216-217.

[4] Ibidem, pp. 218-219.

[5] Paulo Guinote (1990), p. 218.

[6] Idem, p. 219.

[7] MIP, cx nº 48 (469), processo nº 23.

[8] Idem, processo nº 24.

[9] Idem, processo nº 22.

[10] Idem, processo nº 20.

[11] Idem, cx nº 49 (470), processo nº 1.

[12] Ensino Primário Oficial (1910-1915), pp. 12-13.

[13] Carvalho (1996), p. 642. O conjunto desta legislação está disponível no pequeno volume Reforma da Instrucção Primária Decretada em 24 de Dezembro de 1901 (1902). Porto: Livraria Portuense de Lopes & Cª.

[14] Luís António Pardal (1992), Formação de Professores do Ensino Secundário 81901-1988): Legislação Essencial e Comentários. Aveiro: Universidade de Aveiro, p. 13.

[15] Nóvoa (1987), vol. II, p. 524.

[16] Decreto de 19 de Agosto de 1907 transcrito em Reformas do Ensino em Portugal (1996), tomo I, vol. IV, 2ª parte, pp. 504-505.

[17] IAN/MIP, cx. 1, processo nº 27. Os numerosos documentos que constituem esse processo não apresentam numeração específica.

[18] Idem, ibidem, diversos documentos não numerados.

[19] Ibidem, ofício de 13 de Março de 1908, não numerado.

[20] Ibidem, ofício de 17 de Dezembro de 1908.

[21] Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 7 de Março de 1899, p. 18.

[22] Ibidem, sessão de 29 de Agosto de 1908, p. 10.

[23] Carvalho (1996), pp. 677-679.

[24] Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 29 de Oubro de 1906, p. 7.

[25] Idem, ibidem.

[26] Ibidem., pp. 7-8.

[27] Ibid., p. 8.

[28] Ibid., p. 9.

[29] Ibid., p. 11.

[30] Diário da Câmara dos Senhores Deputados, sessão de 11 de Agosto de 1909, p. 3.

[31] Luís Miguel Carvalho e Ana Lúcia Fernandes (2004a), O Conhecimento sobre a Educação e os Problemas Nacionais: Os Congressos Pedagógicos da Liga Nacional de Instrução (Lisboa, 1908-1914). Lisboa: Educa. Versão inglesa, com poucas alterações, com o título “Mens Agitat Molem: The Pedagogical Congresses of the Liga Nacional de Instrução (Lisbon, 1908-1914)” in Paedagogica Historica, vol. 40, nº 5/6, pp. 605-703.

[32] Carvalho e Fernandes (2004a), pp. 16-17.

[33] Idem, ibidem, p. 17.