E muito menos para mim. Tem dias. Tem estados de alma que evoluem muito com a importância relativa que sente que lhe é dada.
Isto vem a propósito de um comentário de um leitor, algo irado, que acha que eu ainda não destaquei o artigo desta semana de António Barreto no Público (já disponível no Sorumbático) porque ele diz coisas com as quais não concordo.
O comentador em causa erra por diversas razões, que passo a enumerar:
- Como várias vezes já referiram, eu tendo mais a reagir àquilo com que não concordo – e há mesmo quem me ache hipercrítico e pouco dado a ver o bright side da vida educativa – do que às coisas com que sinto afinidades. Portanto, se o texto me desagrada, não perde certamente pela demora. Preciso é de lê-lo, pois não comento aquilo que desconheço. É uma questão de método. Coisas minhas. Esquisitices.
- Ora eu hoje não comprei o Público, nem sequer sou assinante para aceder ao texto online. E não consigo ler as miniaturas das páginas por muito que tente. Lamento, estive a trabalhar umas horas para a Escola neste lindo Domingo. A descendência foi a um aniversário de uma amiga e as duas almas docentes cá de casa passaram umas boas horas a ver testes e preparar materiais pedagógicos. Mais um defeito meu. Outra esquisitice.
- Não sou o maior dos fãs do António Barreto de há muito e nunca fiz segredo disso. Desde o tempo em que saiu do PS pela porta direita, para a A, reentrando depois pela porta da esquerda por alturas do fim do Bloco Central. Embirrei especialmente com ele quando, em 1986/87, em plena crise académica e greves a decorrer, o senhor apareceu a anunciar na televisão uma crise e a lançar avisos ao Governo, quando as coisas já estavam na rua. O chamado profeta do dia ontem. E também embirrei com ele quando se aproximou e afastou de todos os líderes do PS desde então até quase ao presente. Ele fez sempre o mesmo com todos, de Soares a Guterres, pelo menos. Não sou do PS, mas não gosto deste tipo de pseudo-senador sempre à espera que o reconheçam como eminência parda do regime. E que amua quando isso não acontece.
- Isto não impede que ache que ele escreve coisas boas. E em outros casos menos boas. E ainda em outros perfeitos disparates, como a evocação serôdia do “fascismo” a propósito de Sócrates. Um outro defeito meu é avaliar os textos pelo conteúdo e não pela autoria. Isso impede-me de aceitar prosas acriticamente, seja no sentido positivo ou negativo. Mais uma esquisitice minha. Feitios chatos, que hei-de dizer.
Mas agora, com tamanho estímulo, fui ler o texto em causa e não tenho qualquer problema em declarar que discordo bastante dele. E nem sequer é uma discordância de pormenor, ou meramente opinativa. É mesmo uma discordância de substância e de facto.
Vejamos algumas partes:
Nas escolas, como em qualquer instituição, a autoridade difusa, camuflada de colegial, tem dado maus resultados. O afastamento das comunidades e das autarquias, relativamente às suas escolas, tem tido, há décadas, consequências nefastas, nomeadamente a do desinteresse dos pais pelo destino das escolas dos seus filhos. Existe já alguma evidência de que os pais se interessam mais pelas escolas privadas do que pelas públicas, onde são, em geral, mal recebidos. Finalmente, as escolas sem autonomia ou com autonomia aparente, como é hoje o caso, transformam-se em repartições dominadas pela burocracia do ministério obcecada com a regulamentação e a uniformização. Aplausos, pois!
António Barreto enuncia, não demonstrando, os «maus resultados» do que chama gestão colegial das escolas. Não se percebe o argumento, em especial vindo de quem tem criticado o actual PM pelo seu estilo de liderança unipessoal. Para além disso, Barreto parece confundir democracia expressa em eleições dos órgãos dirigentes de uma escola com «autoridade difusa». Eu tenho certamente mais experiência do que ele em termos de sistema de ensino (vão cá no currículo umas 10 escolas em 20 anos) e nunca encontrei qualquer «autoridade difusa» causada pelo método electivo. As lideranças são fortes, independentemente de serem electivas ou não. Se assim não fosse, que tal optarmos pela Ditadura como sistema preferido para obter uma «autoridade não difusa»?
Barreto afirma ainda que «há décadas» existe um «afastamento das comunidades e das autarquias, em relação às suas escolas». Infelizmente, o cronista não elabora ou demonstra aquilo que afirma, voltando apenas a enunciar uma espécie de truísmo pessoal. Não explica quem é responsável pelo «afastamento», apenas parecendo que culpa alguém do lado das «escolas». Depois mistura isso com o interesse dos pais e ficamos sem perceber bem do que quer falar.
Para além disso, Barreto afirma – à moda de um Sousa Tavares – que os pais são «mal recebidos» nas escolas públicas e faz mesmo comparações com as escolas privadas, onde há um maior interesse parental. Neste caso, o disparate é tão evidente e de uma dimensão tal, em especial na pena de um sociólogo a sério (que é como eu o acho) que é quase penoso tentar explicar porque Barreto confunde o que não deve. Confunde a dimensão dos dois sectores, confunde a natureza das respectivas “clientelas”, confunde mesmo a relação que se estabelece – naturalmente – entre um serviço público gratuito e universal e um serviço restrito e pago a peso de ouro. Neste particular, Barreto parece abdicar de pensar e analisar o que observa e/ou já devia conhecer.
Quanto à parte da «autonomia», tudo bem, é o tal campo onde tudo vale. Fala-se em «autonomia» e a audiência saliva e levanta-se mecanicamente a aplaudir. Barreto também aplaude.
Mas há coisas mais graves na prosa de António Barreto, porque factualmente erradas:
Há vinte anos, ou mais, que se dão pequenos passos na direcção da autonomia e da “devolução às comunidades” das escolas. Há décadas que se tenta envolver os pais na gestão das escolas, com ineficientes dispositivos que quase nunca resultaram.
O mesmo articulista que afirma num parágrafo que «há décadas» se afastam as comunidades das escolas, afirma que «há décadas» se tenta envolver os pais na gestão das escolas. Sendo eu deformado em História fico sem perceber se Barreto está sempre a falar das mesmas décadas.
Pior: Barreto refere passos no sentido da «devolução às comunidades» das escolas. E isto apenas me faz rir pelo ridículo da afirmação.
Porquê?
Porque não se devolve nada a ninguém que nunca teve essa coisas. E no caso português eu gostaria que António Barreto demonstrasse quando é que as comunidades foram esbulhadas das «suas» escolas. Quem retirou as escolas ao povo? Quem foram os malandros? Os republicanos? Os fascistas? Os revolucionários? Os burocratas? Quando e como?
António Barreto sabe bem que, salvo experiências de sucesso irregular, as «comunidades» ou as «autarquias» nunca tiveram as «suas» escolas. Quanto muito, e isso é mais do que notório quando se estudam os materiais arquivísticos a esse respeito, as «comunidades» pediam as escolas ao Estado Central. Não porque isso fosse necessariamente assim, mas porque afirmavam não poder arcar com os encargos da construção, manutenção, funcionamento e pagamento do pessoal.
E o que dizer do ensino pós-secundário?
Quais foram os Liceus criados pelas «comunidades» e quando isso aconteceu?
António Barreto sabe certamente mais de História Contemporânea do que eu e saberá, consequentemente, muito bem que a sua afirmação não tem qualquer sentido ou fundamentação histórica. É, em Português Corrente, um rematado disparate.
A rede de ensino – se excluirmos as escolas ligadas à Igreja e a algumas experiências pedagógicas ligadas à Maçonaria e/ou ao anarco-sindicalismo – foi sempre empurrada pelo Estado Central, desde a Monarquia Constitucional até à Democracia pós-25 de Abril, com especial ênfase nos regimes republicano e salazarista. Sem excepções, pelo menos nos últimos cento e tal anos.
E isso não se passou retirando poderes às «comunidades», mas antes fornecendo um serviço público que as comunidades e autoridades locais se revelaram, por regra, incapazes de fornecer.
Mas António Barreto parece viver num outro país, ou então tem noções de escala muito estranhas. Escreve ele que:
Não é possível administrar uma organização com dois milhões de alunos, quatro milhões de pais, duzentos mil professores e dezenas de milhares de funcionários.
O exagero no número de alunos e professores (aumentando uns e outros em pelo menos 30%) ou revela manifesta ignorância ou uma vontade de enganar o leitor incauto.
E parece esquecer que os números reais de alunos e professores para o conjunto do nosso país correspondem aos números normais para o sector educativo de cidades como, por exemplo, Nova York, ou para regiões de países como a Alemanha, a França ou a Espanha.
Perante isto, já só se consegue sorrir quando se lê algo como:
A entrega das escolas às autarquias, com responsabilidade e competências, teria ainda a formidável consequência de retirar a maior parte do trabalho ao ministério, reservando-lhe as suas funções nobres, que cada vez exerce menos: inspeccionar, avaliar, prever, assegurar os direitos fundamentais e cuidar da coerência nacional.
Um tipo lê o «formidável» adjectivo e quase esquece tudo o que Barreto escreveu de mal sobre o funcionamento das autarquias.
E então quando se chega às «funções nobres» já só podemos acreditar que Barreto foi confraternizar com Vital Moreira num destes dias e descobriram qualquer tipo de digestivo com propriedades absolutamente «formidáveis» e capazes de os fazer ver a Lúcia no Céu cheia de Diamantes.