Conceitos


Será o Machete um Relvas?

Era o que a assunção clone diria, acaso tivesse lido a Camille (a Paglia, claro,  não a Claudel).

… já li há 30 anos o Paul Veyne e discordei da legitimação conceptual da mistura entre factos e narrativa como se tudo, ou quase, pudesse resumir-se a versões ficcionais dos factos, que seriam apenas nós de uma intriga ao sabor do olhar do narrador.

Embora o original da recensão crítica tenha ficado com o professor da altura, ainda tenho o livro anotado com as discordâncias mais evidentes…

Aqui, com uma síntese muito acessível de alguns dos autores mais recentes sobre o tema.

Fascism

 

Vale a pena comprar a preço de oportunidade numa daquelas lojas grandes com livros perto de si:

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Até porque começa assim:

 É um truísmo que muitos dos que aderem a um movimento revolucionário em ascensão sejam atraídos pela promessa de mudança súbita e espectacular nas suas condições de vida. Um movimento revolucionário é um instrumento de mudança evidente. (p. 17)

Fica para outra altura a ligação entre fanatismo e frustração logo na introdução. 🙂

Gostei de ouvir hoje um grupo de pessoas, com conhecimentos bem acima da média, a zurzir com alguma ironia no conceito de empreendedorismo tal como ele é vendido pelo poder do momento e a tentar que uma ou outra pessoa perceba(m) que o empreendedorismo que interessa para a economia crescer não é abrir uma loja de esquina com alguém amigo e achar-se que já se é uma vítima do sistema burocrático.

Porque há diferença entre o empreendedorismo de necessidade, uma espécie de auto-emprego feito quantas vezes de tentativas desesperadas em torno de negócios quase anacrónicos, e o empreendedorismo ligado à inovação, que não está acessível a qualquer desempregado pouco qualificado e sem acesso a financiamentos.

Alguém deveria explicar isto, mas devagarinho, a alguns governantes, para evitar que digam disparates.

Sínteses muito introdutórias ao tema, onde se nota bem a distinção em voga em alguns círculos entre as funções obrigatórias e as voluntárias do Estado. Historicamente, umas são as que predominaram até ao século XIX, enquanto as outras são as que passaram a caracterizar o Estado Contemporâneo.

Entre nós há quem considere que todas devem ter a mesma importância, enquanto outros demonstram não ter vontade nenhuma para mais do que o mais básico.

Ou seja, o Estado deve servir para manter vivos os cidadãos de agressões militares mas não de doenças. 👿

FUNCTIONS OF A MODERN STATE

What are the main Compulsory and Optional functions of the Welfare State ?

que fará transbordar a taça.

Insurreição individual, algo esquecido por quem gosta do conforto protector do colectivo.

(RE)PENSAR O SENTIDO DA GREVE – PARA UM OUTRO SINDICALISMO

Proponho-me continuar a reflexão sobre o sentido da greve actualmente, o que permitirá também questionar as concepções sindicais associadas.

Na época clássica do capitalismo, os trabalhadores aprenderam a utilizar a arma da greve para fazer valer os seus direitos, para alcançarem melhores condições remuneratórias e de trabalho, porque tinham a consciência da imprescindibilidade do seu papel. Sem o seu contributo, sem o seu trabalho, as máquinas tornavam-se inúteis e os seus proprietários viam-se na contingência de perder largas somas.

Com a evolução cada vez mais rápida do processo capitalista global, nos nossos dias, assiste-se ao crescimento hegemónico do “trabalho intelectual” (seja do trabalho científico, ou do mais especializado, até às diversas modalidades de saber-fazer mais prático), que vai de par com a utilização cada vez mais intensiva das máquinas, o que significa que o trabalhador, a natureza física do trabalho e a condição deste de medida do valor tendem a perder importância, a que se acrescentará ainda a intrusão de outros factores de desequilíbrio – como sejam a precarização, a mobilidade , a flexibilidade, a deslocalização –, evidenciando assim a subcontratação da totalidade do sistema produtivo. (Conjunto de fenómenos este que, diga-se de passagem, afecta também a concepção mais comum de exploração).

Por outro lado, a concepção originária de greve tinha como correlato político-ideológico um agente revolucionário, o proletariado, que, no seu processo de auto-consciencialização e autodeterminação enquanto classe, via naquela um poderoso instrumento da sua luta emancipatória.

O processo geral de “proletarização” a que estamos a assistir pouco tem a ver com o conceito de “proletariado” marxista enquanto classe produtiva indiferenciada e explorada, desvinculada dos objectos do seu labor. No lugar dele emerge o “consumariado” (Bard, Soderqvist, 2002), uma “classe” de consumidores que tem por referencial axiológico o individualismo hedonista, fragmentando e dispersando o corpo social, com níveis de formação e de integração laboral cada vez mais diversificados e flexíveis, e onde que a ideologia perde a sua pregnância de sistema de interpelação dos indivíduos enquanto membros conscientes de uma classe determinada.

O significado e o alcance dos processos de luta dos trabalhadores no capitalismo digital global – mormente a greve – encontram-se assim profundamente modificados nos seus pressupostos tradicionais. A greve constitui, hoje, e genericamente, uma acção de protesto direccionada principalmente ao grande público, apostando na atenção dos meios de comunicação, o que faz com que a preocupação maior incida mais na exploração do seu impacto mediático do que na força do seu impacto junto dos gestores e proprietários.

Na recente Greve Geral, foi bem notória a preocupação dos agentes no terreno em conferir, sobretudo, visibilidade às suas acções, com os dirigentes a acorrerem aos pontos mais emblemáticos (por tradição) ou com mais significado (maior índice de mobilização), onde invariavelmente os aguardavam repórteres e câmaras para os “directos”, para as proclamações ou para as reacções.

Penso que a forma (e não a fórmula ou fórmulas que muitos pedem…) de alterar este estado de coisas passa, antes de tudo o mais, por investir na repolitização da greve e da intervenção sindical, na reconfiguração do sentido destas, revestindo, não uma forma tão espectacular (a encenação da Greve Geral como um grande espectáculo mediático de protesto de massas…) e ostensivamente ideológica (na ilusão de que haverá ainda um agente capaz de assumir um programa ideológico global…), mas que se preocupe mais com as pessoas mesmas e com os seus problemas reais do que com estribilhos e encenações para a “mobilização”, que discuta e apresente as alternativas e as estratégias para um processo de luta claro e determinado em torno de objectivos que as pessoas reconheçam como seus e pelos quais sintam que vale a pena lutar.

As pessoas já não se revêem nos grandes calendários ideológicos de protestos pré-programados, mas pretendem que as suas reivindicações, que têm por base os problemas que directamente as afectam no seu quotidiano laboral, sejam compreendidas atendidas e, consequentemente, reflectidas nas formas de luta, nas quais estarão dispostas a participar num quadro de proximidade e de pertença.

O que não pode deixar de implicar, também, alterações estruturais e funcionais nos aparelhos sindicais, que estão pensados e arquitectados a partir de uma lógica de cúpula, oligárquica, tributária das concepções centralistas e burocráticas tradicionais, cristalizadas ideologicamente em rituais colectivos de auto-gratificação para consumo dos fiéis.

Como sublinhei no outro post, temos que ter plena consciência de que o que está aqui, fundamentalmente, em causa é uma questão de poder, uma questão que passa pelas estratégias da sua conservação ou então, desejavelmente, da sua renovação e transformação. Uma questão, enfim, crucial para a democracia, para a sua sobrevivência.

Farpas

MUDANÇA: QUEM A QUER?

Quando alguém, como eu fiz, põe em causa o significado da Greve Geral devido à sua falta de eficácia e ao esgotamento das suas fórmulas esteriotipadas, aparece invariavelmente gente a ripostar pedindo – às vezes de forma ácida… – que eu apresente, então, formas de protesto melhores ou alternativas.

Não querendo escapar ao contraditório, o que eu pretendo chamar a atenção é para a ingenuidade que, no fundo, assiste àquela posição. Essa forma de interpelação parece partir do convencimento de que os protestos sindicais atingiram um ponto de saturação devido às estruturas dirigentes terem já esgotado o repertório das formas de luta que lhe estão consignadas. Como se o horizonte de possibilidades se encontrasse encerrado e agora estivéssemos condenados apenas a baralhar as cartas para um jogo de antemão sabido.

Pergunto eu, porém: será que aquilo que realmente falta são ideias ou projectos para novas formas de acção e de protesto? Os sindicalistas de carreira, pelo menos uma boa parte deles, com a tarimba e os conhecimentos que têm, com o tempo e disponibilidade que usufruem, não conseguirão de facto conceber outras estratégias de luta mais consistentes?

Ou o que falta – e este é o ponto capital – não será, antes, vontade de mudar?

Porque a mudança, a mudança efectiva, se podemos saber quando ou como começa, já é mais difícil sabermos quando e em que termos acaba. Os velhos modelos, entretanto, têm estatutos adquiridos, colectivos instalados, rituais consagrados, crenças arreigadas e actores reconhecidos. A previsibilidade, a rotina e o sentido da conservação são os seus referenciais paradigmáticos (no sentido forte, kuhniano, se quisermos, do termo).

Passar de uma “zona de conforto” para um “espaço de turbulência”, de imprevisibilidade, em que as variáveis que entram em cena podem desafiar e subverter os poderes instituídos e escapar ao controle, provoca naturalmente resistência. E medo.

Medo da mudança: eis o que, afinal, tolhe os nossos sindicatos. Não, não é falta de imaginação para conceber outras estratégias de luta mais eficazes ou outras formas de luta mais mobilizadoras que é o problema. É a falta de vontade de mudança, por se ter medo que esta possa alterar a correlação de forças, o equilíbrio estabilizado dos poderes já conquistados. O instituto “Greve Geral” não passa de um mecanismo de segurança para que esses equilíbrios se possam manter e os respectivos poderes se continuem a fazer prevalecer.

Farpas

Made in brazil, odessa or oporto, com trademark pintinhodacosta ou daquela mais nova, esburacada, de que falou o jardinesco?

É que isto de falar em fruta em Portugal tem muito que se lhe diga e a ministra Assunção deveria saber que se presta a desenganos.

A ministra da agricultura desvalorizou hoje a subida do IVA na alimentação para bebés, afirmando que as alturas de crise são alturas para “voltar a dar fruta em estado natural às crianças”.

… aplicada de forma selectiva. Eu, por exemplo, desmobilizaria muita gente.

Professores protestam em roupa interior

Dezenas de milhares de vagas foram eliminadas desde 2007 e mais 14 mil deverão ser cortadas em 2012.

É curioso como se lê e ouve tanta gente a remeter a discussão em torno da renovação ou termo dos contratos para os conceitos de ano escolar e ano lectivo.

Nos últimos tempos, a expressão ano escolar passou a  surgir na maioria dos documentos, em particular nos que regulamentam os concursos para colocação de professores.

Ao contrário de algumas opiniões, eu não considero que o ano escolar não corresponda ao ano lectivo, muito menos que seja mais curto.

Se formos à etimologia da expressão, ano lectivo (letivo) é que corresponderia ao ano de actividades lectivas, enquanto o ano escolar se aplicaria a todo o ano que decorre desde 1 de Setembro de um ano civil até 31 de Agosto do ano civil seguinte (algo que substituiu o velho ano lectivo a iniciar-se a 1 de Outubro e a terminar a 30 de Setembro). Em nenhum  lado está algo em contrário, pelo menos que eu conheça.

Durante o ano escolar há muitas actividades não-lectivas nas escolas que implicam o trabalho dos professores e cada vez mais isso passou a acontecer durante o mês de Agosto (basta lembrarmo-nos dos exames, vigilâncias, classificação, revisão, mas também de como os Cursos Profissionais se podem prolongar com os respectivos estágios). Não se entende como, saída do nada, aparece a data de 31 de Julho como sendo o fim de qualquer coisa (em termos estritos o ano lectivo terminaria com as aulas e avaliação dos alunos, enquanto o ano escolar só termina a 31 de Agosto).

De acordo com o decreto-lei 20/2006 que é base da regulamentação dos concursos, a expressão e conceito ano escolar aparece repetidamente, sendo que em nenhuma das situações se entenda outra coisa diferente de um ano completo com 12 meses. Aliás, em vários pontos do diploma, quando se fala da plurianualidade das colocações, se subentende vagamente outra coisa diferente do que anos sucessivos, sem interrupções pelo meio.

Veja-se, por exemplo, o nº 3 do artigo 54º:

3—A colocação, em regime de contratação, é efectuada pelo período de um ano escolar, sendo renovável por iguais e sucessivos períodos, precedendo apresentação a concurso, desde que, cumulativamente, se trate de docente portador de habilitação profissional, se mantenha a existência de horário lectivo completo e exista concordância expressa da escola relativamente à renovação do contrato.

Nesse aspecto, o decreto-lei 51/2009 não alterada nada de significativo e também em todo ele o conceito de ano escolar surge associado à ideia de um ano completo. Tomemos outra vez o artigo 54º (nºs 3 e 4) como exemplo:

3 — A colocação, em regime de contratação, é efectuada por contrato de trabalho a termo resolutivo.
4 — A colocação é efectuada pelo período de um ano escolar, renovável por iguais e sucessivos períodos, até ao limite de quatro anos escolares, incluindo o 1.º ano de contrato.

No caso do decreto-lei 35/2007 de 15 de Fevereiro também se lê apenas o seguinte:

2 – O período mínimo de duração do contrato de trabalho é de 30 dias.
3 – A duração do contrato de trabalho tem por limite o termo do ano escolar a que respeita.
4 – O contrato destinado à substituição temporária de docente titular da vaga ou horário vigora até ao 3.º dia útil a contar do dia imediato ao da apresentação deste, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
5 – No caso de o titular da vaga ou horário se apresentar durante o período de realização dos trabalhos de avaliação ou durante os 30 dias imediatamente anteriores, o contrato mantém-se em vigor até à sua conclusão.

A única limitação acontece em relação aos contratados para a leccionação de disciplinas de cursos profissionais e tecnológicos por módulos.

6 – O contrato destinado à leccionação das disciplinas ou módulos de uma disciplina de natureza profissional, tecnológica, vocacional ou artística dos ensinos básico e secundário vigora apenas pelo período de duração do serviço lectivo distribuído e dos respectivos procedimentos de avaliação.

O aviso 9514-A/2011 – abertura do concurso anual com vista ao suprimento das necessidades transitórias de pessoal docente para o ano escolar de 2011 -2012 – mantém o mesmo conceito de ano escolar, sendo isso notório nas passagens em que trata das situações relativas a professores dos quadros, nomeadamente os casos de DACL e DCE. Em nenhum ponto se assume ano escolar como um ano amputado ou truncado no seu final.

Complementarmente podem consultar-se ainda o despacho normativo 36/2002 de 4 de Junho ou o despacho relativo à organização do calendário para o ano escolar de 2011-12 e nada se encontrará contra a data de 31 de Agosto como a de final do ano escolar. Apenas se lê – erradamente – que os estabelecimentos de ensino encerram para férias de Verão durante o mês de Agosto. O que não é verdade.

Resumindo: em caso de dúvida parece-me evidente que o ano escolar se estende de 1 de Setembro a 31 de Agosto, estendendo-se no tempo para além do que se considera ser o ano lectivo no seu sentido mais estrito de período do ano escolar com actividades lectivas.

O resto é poeira nos olhos.

Graham Richards, Psychology – the Key Concepts (Londres: Routledge, 2009, p. 60)

Também é um manual de acesso livre:

A sério… eu admiro quem se deu ao trabalho da conceptualização…

 

Eu sei que podia – deveria? – fingir que não tinha lido a crónica de Santana Castilho na penúltima página do Público de hoje.

Mas li.

E o conceito ocorreu-me.

Agora já posso ser apedrejado.

Mal por mal, vou-me habituando.

Dificilmente se terá ouvido e lido tanto sobre revolução como nestes últimos tempos. Enquanto os revolucionários de outrora retomam, a medo, o termo, encarando com cepticismo manifestações revolucionárias (cf. posições de alguma esquerda sobre o que se vai passando no norte de África), os conservadores anti-revolucionários de antanho (empresários, analistas financeiros, comentadores políticos)  agarram na palavra revolução e despejam-na em tudo.

Querem uma revolução no Estado, uma revolução nas mentalidades, uma revolução na economia, uma revolução na vida política, caramba, parecem mesmo uns robespierres do século XXI, pelo menos na conversa (fiada). Não sei se é por hipérbole da palavra mudança que, de súbito, a revolução passou a seduzi-los, eles que são ou descendem de um consolidado pensamento contra-revolucionário.

Como sobre quase tudo, eu tenho uma teoria parva sobre isto e um conceito à medida para estas revoluções enunciadas.

Acho que estes revolucionários neófitos não pretendem uma revolução à velha escala macro, em que tudo vai à frente e não fica pedra sobre pedra (porque isso abalaria os fundamentos que os mantêm em posição de destaque), nem à escala micro, em que teriam de alterar as suas próprias práticas (pois acham que são as suas que estão certas e não padecem de alteração).

Eles defendem aquilo a que eu chamarei a meso-revolução, uma revolução mediana, ali ao lado, naqueles sectores que lhes convêm mais, normalmente atingindo apenas os outros. Querem uma revolução à sua medida. Ora, por definição e pela prática conhecida, uma revolução a sério não é isso. O que eles querem é um simulacro de revolução. Uma revolução no que lhes dá jeito. De certo modo, também é o que penso de alguns à rasca. Querem a revolução, mas só até certo ponto, pois não é preciso exagerar…

Em tempos isto chamava-se reformismo… e do selectivo.

Ou uma espécie de díptico com o post abaixo.

Há poucas coisas que me incomodem mais do que uma crítica voluntariamente injusta ou um elogio desnecessário ou sem cabimento. Claro que existe a areia na virilha, em dia de praia sem protector solar e as perspectivas de carreira de José Castelo Branco. Mas, tirando quase só isso, críticas e elogios sem fundamento são coisas que me perturbam, num caso porque se nota que o objectivo não é demonstrar nada, mas apenas magoar, e no outro que a pessoa que elogia ou não tem a noção das coisas ou, de forma directa ou indirecta, tem algum objectivo a atingir.

A lisonja, o elogio fácil, ou quase só a insinuação de, é uma das técnicas mais antigas para corroer o carácter de outrem e, pelo caminho, para colocar à prova convicções e coerências.

Tenho, numa escala apropriada à minha escassa escala, uma conta modesta de ambos os males, críticas só porque e elogios só para que. E falo na primeira pessoa, para que nem tudo paire no plano da teoria abstracta e para que não se pense que os espelhos se pariram em casa e aqui no blogue.

Faz parte da maturidade mental e emocional de cada um(a), saber distinguir o trigo do joio, o essencial do supérfluo.

Não nego: há também poucas coisas como um elogio por parte de alguém que nada tem a ganhar directamente com isso. Por isso, aprecio elogios bem póstumos de alunos que em nada já dependem de mim ou recordações de colegas que nada me ficaram a dever ou podem esperar agora. Esses são os elogios que estimamos e guardamos. Escassos, preciosos, deveríamos poder cristalizá-los e emoldurá-los, nem que seja na mente.

Os outros, aqueles que decorrem da lisonja circunstancial, com intuitos mais ou menos instrumentais ou que, mesmo benignos, decorrem de uma fraca avaliação da dimensão das coisas, são embaraçadores.

Se às críticas injustas se pode responder com os cotovelos, aos elogios e à lisonja é mais complicado, em especial quando não é assumidamente maligna. Mas por vezes é.

Na nossa vida social, política e cultural, a lisonja tornou-se omnipresente. Assim como a demonização. A hiperbolização dos qualificativos é um excesso lastimoso e muito mais lastimoso quando promovido pelos próprios de forma activa ou passiva, como forma e alimento.

E vivemos um tempo em que o lambe-botismo se confunde, nos dias bons, com a chamada graxa, e nos maus, com cultos de personalidade perigosos.

Até porque, em muitos casos, a crítica fornece alimento bem mais proveitoso. Seja a justa (porque nos melhora), seja a injusta (porque nos legitima em parte a descarga de bílis).

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