5 pontos sobre a alergia de um deputado à Constituição
“Os alunos não devem ter nenhum contacto com esta Constituição”, já que faz mais sentido terem contacto com o conhecimento de “conteúdos de direito constitucional” que não estejam vinculados a ideais “de direita, nem de esquerda”.
Fernando Negrão, deputado do povo português (citado pelo Jornal I) http://www.ionline.pt/artigos/portugal/os-alunos-nao-devem-ter-nenhum-contacto-esta-constituicao-diz-fernando-negrao
1.Toda gente percebe de currículo das escolas. Toda a gente acha que pode discutir o que se ensina e como se ensina. E se eu me pusesse a opinar sobre a qualidade das compressas ou do instrumental que se deve usar ou a ordem ideal pela qual se devem aplicar cortes nos tecidos, durante uma cirurgia? Ou, se mais voltado para a especialidade de Fernando Negrão, me pusesse a dizer como se devem conceber e aplicar as normas de processo civil em casos complexos? Provavelmente receberia resposta, mais ou menos polida, sobre a minha incapacidade técnica sobre a matéria.
Professorzeco de História do 2º ciclo, posso perceber muito pouco de outras coisas mas, como acho que percebo da minha profissão, acho que a douta opinião do Senhor Deputado sobre a ferramenta essencial dela (o currículo), só me pode merecer a cordata perspectiva de que é profundamente ignorante, deslocada e, já agora, politicamente orientada e “vinculada” (e até intolerante e censória). E não é qualquer um que pode querer censurar a publicidade da Constituição (que acabou com a Censura). “Esta” ou outra qualquer que a soberania popular elabore.
Espero que não seja sinal de que os políticos, arrogando-se um conhecimento da escola e da “ensinagem” que não têm, comecem a querer “vincular ideologicamente” os programas das disciplinas. Na Matemática, a fragilidade curricular dos políticos já está a dar grossa asneira. Será que ainda vamos ver debates à americana sobre a desvinculação do ensino da Evolução Biológica face ao Livro do Génesis?
2. A Constituição já se ensina (e esse é um dos erros da proposta dos Verdes sobre o seu ensino, que parece bem intencionada, mas que esquece esse detalhe, o que a torna razoavelmente inútil e até despropositada). A História das Constituições portuguesas, e até a sua comparação ao longo do século XIX e XX, faz parte do programa da Disciplina de História (até do 2º ciclo, que ensino). Entre outras coisas, ensina-se o conteúdo dos direitos fundamentais e a organização do poder político (separação de poderes, processo eleitoral, etc). Além disso, ao estudar-se o período do Estado Novo e o 25 de Abril tem de se falar aos alunos da Constituição e do processo da sua elaboração. Muitas escolas, mantiveram, na sua estreita autonomia, limitada por razões “ideológicas” do Governo, disciplinas de educação cívica ou para a cidadania, mesmo após a extinção da área curricular nacional. Devem falar de minhocas com certeza…. E se a Constituição enforma o essencial da vida social e as outras leis (embora o Governo se esqueça bastas vezes) muitos outros assuntos do currículo básico e secundário vão ter ao seu estudo e conhecimento.
3. O que se ensina comprovadamente não chega (daí a boa intenção da proposta dos Verdes). São proverbiais aqueles inquéritos de porta de faculdade em que o repórter pergunta pela Assembleia da República e sai Assembleia Nacional ou em que estudantes adultos não sabem explicar o que é a autonomia regional ou o veto presidencial. Nem a todos sairá o presidencial “cidadões”, mas nem todos darão consistência a ideias seguras sobre cidadania (e, no debate parlamentar, muitos deputados, professores, salientaram essa ignorância, até ao nível do ensino superior).
4. Longe de mim querer dar lições de Direito Constitucional a um deputado que, de origem, é magistrado judicial mas, um percurso pelo índice da Constituição desmonta a ideia de que a Constituição seja toda ela (ou sequer, no essencial ou maioria) politicamente vinculada e de esquerda.
Os 296 artigos da Constituição são todos eles políticos (uma Constituição, “esta” ou outra qualquer, é um documento político) mas uma análise descritiva permite concluir que, prescindir de os ensinar, significa os alunos não terem contacto, por exemplo, com Princípios Fundamentais (que as outras constituições democráticas todas referem e não são de esquerda ou de direita – 11 artigos), Direitos e Deveres Fundamentais (que transcrevem, às vezes, ipis verbis o que diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou compromissos internacionais do Estado Português – dezenas de artigos) ou com a forma de organização do Estado (que, se perceberem na sua descrição, lhes permitirão escolherem melhor ser de esquerda ou de direita, já agora).
E o Habeas Corpus é de esquerda ou de direita? E os símbolos nacionais? Os artigos sobre Organização económica talvez desagradem, em parte, a ouvidos de direita mas a concepção de propriedade privada e da actividade empresarial, que também lá está, desagrada a alguns mais canhotos.
5. Concedo que o Preâmbulo tem em 2 expressões uma potencial carga de Esquerda ao usar as palavras fascista e socialismo (apesar da nítida ressonância, na maioria esmagadora das restantes palavras, de textos Constitucionais Americanos) mas, mesmo aí, a História ajuda a entender. Ensinar História é ensinar isso (as “cargas”, as subtilezas e as subjectividades) e ensinar que a CRP foi um compromisso histórico (como todas as Constituições) que permitiu resolver uma crise politica, que teve aspectos complexos e que o compromisso foi bom, pelo que trouxe, mesmo se nem todos concordaram com o conteúdo todo (e essa discordância é a matéria da História).
Ou, acha o Senhor Deputado que devemos deixar de ensinar, em nome da pureza e da procura do ensino politicamente inerte, o facto histórico de que até houve partidos que votaram contra a Constituição (não sendo ele o seu)?
A pureza inerte do currículo e da escola não existe e se, em vez de se entreterem com estas discussões, a meu ver ociosas, os senhores deputados vissem a qualidade das leis sobre escola que fazem talvez fosse mais útil.
Por exemplo, cidadão que participou (inutilmente) mas como é seu direito e dever constitucional na discussão pública do Estatuto do aluno e Ética escolar (bárbara titulação), questiono-me se, além da pouca gramática de que padece em certos artigos, é de esquerda ou de direita?
É certo que, em vários artigos, se apela explicitamente à Constituição como fundamento mas, se se concluir, pelo filtro “lateral” do Senhor Deputado, de que tem artigos de direita podem ser, por isso, menos cumpridos? Ou, será que como o Estatuto apela à Constituição, e se diz baseado nela, “os alunos não devem ter nenhum contacto” com ele?
Luís Sottomaior Braga (professor de História do 2º ciclo)
Maio 16, 2013 at 1:12 pm
do “liberalismo” e da ruína do lugar:
http://psicanalises.blogspot.pt/2013/05/e-para-estas-trafulhices-que-serve-o.html
Maio 16, 2013 at 1:13 pm
Boa explicação! Ainda que ache o preâmbulo da Constituição anacronicamente de uma esquerda que já não corresponde ao sentimento geral dos cidadãos portugueses (as eleições provaram isso sistematicamente, e se a esquerda mais convicta julga a democracia descartável, como cada vez mais sugere, então a constituição é irrelevante).
Por outro lado, a proposta de Os Verdes (partido estranho numa Democracia, nunca foi realmente a votos!) não é a favor do conhecimento pelo conhecimento, eles querem inocular precisamente os arcaísmos comunistas nos jovens alunos. Contudo, confio que os professores de História saberão fazer esse trabalho, como refere, de contextualização, de compreensão crítica. Como deve ser, aliás, com todas as criações humanas, sobretudo com aquelas que querem, pelo menos até certo ponto, vincular a realidade a uma ideologia.
Maio 16, 2013 at 1:23 pm
a) O sr. Braga contesta o Sr. Negrão sem o fazer: reafirma a conveniência de contacto com conteúdos (até os elenca).
a) Não é seguro que apenas aos professores caiba definir os conteúdos e as orientações educativas.
c) O discurso pretensamente anti-ideológico quase enferma da doença que pretende sarar.
Maio 16, 2013 at 1:29 pm
“Os alunos não devem ter nenhum contacto com esta Constituição” (FN).
Sublinhemos desde logo o “esta”. Curiosamente, o PPD/PSD votou favoravelmente ESTA constituição, aprovou ESTE texto constitucional.
A deriva neo e ultraliberal que tomou conta do partido não se reconhece na matriz social-democrata (e personalista) do PPD, da altura de Sá Crneiro e da Constituinte, que foi capaz de se rever nos pontos principais do nosso texto fundamental e que por isso, então, o aprovou.
Mas pior do que isso, o actual PSD (a sigla é uma ironia…) manifesta uma gritante falta de cultura democrática (patente na incapacidade de obedecer ao primado do estado de direito, de afrontar o TC, de cumprir as promessas eleitorais, de dialogar e debater, etc.), que o faz desvalorizar tudo aquilo que promova o fortalecimento dos mecanismos democráticos e da participação cívica, como é o caso desta iniciativa.
O CDS, pelo menos, tem uma posição coerente numa coisa: votou contra esta Constituição.
Mas o que deveria estar em causa era o contacto com a Constituição enquanto trave mestra do edifício democrático e do estado de direito – perspectiva fundamental para ensinar aos alunos – e não os aspectos de natureza mais ideológica, que serviram de pretexto para os centristas alinharem com o seu parceiro de coligação.
De resto, o problema dos partidos da direita não se refere ao facto de a nossa Constituição apresentar uma marca ideológica, mas dessa marca ideológica ter um sentido que não lhes agrada.
Porque não existem Constituições neutras…
E confirma-se, mais uma vez, a ignorância e o desprezo dos deputados em relação aos assuntos da Educação, o que diz quase tudo sobre a sua preparação para o cargo.
Maio 16, 2013 at 1:59 pm
estou em choque!
o senhor deputado que vá aos EUA sugerir o mesmo, pode ser que se espante.
3.
Desde quando são os professores a fazer os currículos? Sim, desde quando e em que país?
Maio 16, 2013 at 2:48 pm
#5
Ainda bem; pior iríamos se fossem.
Maio 16, 2013 at 2:50 pm
Achas mesmo? Tens uma baixo auto-estima;meia vazia claro..
Maio 16, 2013 at 3:29 pm
Acho mesmo. Já ouviste falar em cultura (ciência, tecnologia, valores, família, economia, arte, património de todo o género, desafios particulares e colectivos…?) Desligas a escola da mesma? Todos os ditadores o têm tentado fazer. (Alguns até eram professores…)
Maio 16, 2013 at 3:34 pm
Muito bem exposto, está tudo dito!
Claramente desmontadas as contradições e incoerências do discurso de uma direita obtusa, reaccionária e ressabiada que quer ajustar contas com o passado, sobretudo com esses tempos de que a Constituição dá ainda testemunho, em que se sonhou com um país governado pelo povo e para o povo, um Portugal sem donos.
Maio 16, 2013 at 4:08 pm
Eu aprovo o voto contra. O Dr. Negrão indica-nos o caminho. As nossas crianças devem ser poupadas aos perigosos traumatismos inflingidos pelo conhecimento dos pesados anos de chumbo que geraram esta constituição, datada de nem sabemos quando (nem é bom saber, “vade retro!”). Porque há que construir o radioso futuro destes nossos amados jovens que, acreditando nas vigorosas medidas da nossa querida “uma maioria, um governo, e um presidente” será certamente Negrão.
Maio 16, 2013 at 7:20 pm
#9
o problema é que à direita portuguesa mais estúpida do mundo se junta a esquerda mais idiota do planeta…
Maio 16, 2013 at 11:43 pm
# O Dr. Negrão não votou a Constituição, na altura não estava no PSD, estava no MES.