Cheque-ensino: liberdade para escolher?
O cheque-ensino é uma ideia assente em dois pressupostos caros aos que se consideram liberais: primeiro, que o direito à educação e o dever de cumprir a escolaridade obrigatória se podem reduzir à dimensão económica da mera prestação de um serviço. Segundo, que o Estado existe apenas para garantir as funções ligadas à soberania, como sejam a defesa, a ordem pública, o cumprimento das leis ou o respeito da propriedade privada. As funções sociais que foi adquirindo nos últimos 100 ou 150 anos, tais como o ensino e a saúde públicas ou a segurança social, poderiam ser mais bem asseguradas pela iniciativa privada funcionando segundo as leis do mercado, pelo que todos teríamos a ganhar se o Estado “devolvesse” às escolhas livres dos cidadãos os recursos financeiros destinados àqueles fins.
Ora quando se propõe universalizar o cheque-ensino num país como Portugal, convém dizer que o que se está a propor é uma solução inviável num país em grave crise financeira, por implicar, pelo menos a curto prazo, um aumento de custos do sistema educativo. Uma fuga para a frente voluntarista e imprudente, pois as experiências que noutros países têm sido feitas com a sua introdução são limitadas, regra geral, a determinada área geográfica, ou a grupos populacionais específicos. O cheque-ensino pode ser uma resposta pontual adequada a uma situação ou problema educativo concreto, e alguns resultados positivos têm, ao que parece, sido alcançados. Não são uma panaceia universal, a aplicar de forma indiscriminada a um país inteiro. Claro que há o exemplo da Suécia, mas creio que nem os recursos que este país dedica ao sistema educativo nem as características da sua população escolar e da própria sociedade são equiparáveis aos que temos entre nós. E, ainda assim, os primeiros resultados da aplicação do cheque-ensino não parecem registar melhorias, pelo menos na comparação internacional.
Voltando a Portugal, a realidade que temos é a de uma rede escolar pública que é a única que cobre todo o país e que reflecte, naturalmente, o desequilíbrio da distribuição demográfica: muitas escolas no litoral, dentro ou em torno dos centros urbanos, e escassas nos municípios do interior, onde em muitos casos uma única escola na sede do concelho recebe todos os alunos a partir do 5º ano. Quando se invoca a “liberdade de escolha” universal, a primeira coisa que se esquece é justamente que na maior parte do nosso país essa escolha não existe: só há uma escola. E acrescente-se que mesmo esta escassa oferta educativa tem sido sistematicamente reduzida, nos últimos anos, com a política dos centros escolares, dos agrupamentos e dos mega-agrupamentos escolares. Fecharam-se escolas e cursos e fundiram-se diferentes projectos educativos numa uniformização que reduziu e limitou ainda mais as escolhas, em casos em que estas ainda eram possíveis.
Onde a liberdade de escolha da escola pode fazer algum sentido é nos centros urbanos, onde coexistem diferentes escolas públicas e privadas, as distâncias são menores e maiores as facilidades de transporte. A esse respeito, nada como aprender com a experiência, e por isso deixem que vos conte o que se passou em Coimbra, cidade que foi pioneira numa política afim da do cheque-ensino, embora sem esta designação. Descobriu-se um dia que a cidade precisaria de uma nova escola de 2º e 3º ciclo. Mas como a escola teria de ser central e não havia terreno nem dinheiro para a construir, optou-se pela alternativa mais económica de fazer contratos de associação com todos os colégios da cidade, de forma a que estes recebessem os alunos que o sistema público não conseguia comportar.
Passando ao lado dos interesses pessoais, dos compadrios e das influências que se jogaram em todo esse processo, centremo-nos no resultado prático: acentuaram-se fenómenos de segregação e guetização no sistema educativo. Com as maiores facilidades que passou a haver para escolher a escola dos filhos, os colégios, e mesmo algumas escolas públicas que se tornaram referência, passaram a ter uma procura superior à sua capacidade de oferta, o que inverteu o princípio da livre escolha: quando não cabem os alunos todos, a escola tem de aceitar uns e excluir outros. E já que tem de escolher, escolhe obviamente os melhores, os mais vocacionados para o sucesso, tendo em conta o seu percurso escolar anterior ou o background familiar. Ou se quisermos, em linguagem politicamente correcta, a escola selecciona os que melhor “se identificam com o seu projecto educativo”…
Os alunos mais problemáticos ou com maiores dificuldades tenderam a partir daí a concentrar-se nas escolas de segunda escolha, um fenómeno acentuado pelos investimentos da Parque Escolar, beneficiando as escolas públicas que já eram as mais procuradas em detrimento das mais degradadas. E eis-nos perante uma realidade incómoda da livre-escolha, que os seus defensores geralmente omitem: gostamos de escolher, detestamos quando não somos escolhidos. E no competitivo mundo novo que os nossos neoliberais encostados ao Estado tanto gostam de anunciar muita gente vai ser excluída. Se formos na conversa deles e se os deixarmos…
António Duarte
Outubro 21, 2012 at 4:41 pm
Lúcido!
E, como já se provou noutros lados, a desigualdade vai aumentar.
Outubro 21, 2012 at 4:47 pm
por falar em liberdade de escolha, como vai o apoio ao estudo nas vossas escolas?
na minha vai uma confusão pegada, os diretores de turma começaram a achar que não podiam negar isso a ninguém e vai daí temos turmas completas no apoio ao estudo e noutras dois ou três alunos, diz-que -é- uma-espécie-de-lei que permite tal coisa, será?
o que é certo é que os pais andam em polvorosa, pois todos querem os filhos lá dentro porque pensam que assim têm explicações pagas pelo estado a português e matemática.
porque não se teria acabado com isto de vez?
Outubro 21, 2012 at 4:49 pm
Concordo e considero, se o autor me permite, um texto que refecte uma visão muito esclarecida da realidade, alé de estar muito bem escrito
Apenas um reparo(?): quando dizes … um fenómeno acentuado pelos investimentos da Parque Escolar, beneficiando as escolas públicas que já eram as mais procuradas em detrimento das mais degradadas., nem sempre isso aconteceu (saiu a intenção furada, por certo). Um bom exemplo: a E S de Passos Manuel, em Lisboa…
Outubro 21, 2012 at 4:49 pm
… além…
Outubro 21, 2012 at 4:50 pm
#2,
Don’t ask, don’t tell… 😆
Outubro 21, 2012 at 4:54 pm
E no secundário,como poderão as escolas públicas resistir às médias oferecidas pelos privados?
Quanto a Coimbra, uma das escolas de “segunda escolha”, é privada.
Outubro 21, 2012 at 5:45 pm
“Both liberty and equality are among the primary goals pursued by human beings throughout many centuries; but total liberty for wolves is death to the lambs, total liberty of the powerful, the gifted, is not compatible with the rights to a decent existence of the weak and the less gifted.”
― Isaiah Berlin, The Crooked Timber of Humanity: Chapters in the History of Ideas
Outubro 21, 2012 at 6:17 pm
A liberdade de escolha de uma escola-um projecto educativo, entrará sempre em conflito com a capacidade económica e social do indivíduo, a partir do momento em que não existir uma igualdade de rendimentos e de oportunidades (partindo do princípio de que existe igualdade face à lei).
Como resolver então este problema que se articula a vários níveis e com valores dificilmente compatíveis entre si?
António Duarte não responde, apenas insiste no velho modelo em que o Estado comanda e controla autocraticamente o aparelho ideológico da educação pública.
A que é que isso tem conduzido?
Ao embuste de uma escola “inclusiva” que não protege nem capacita os mais fracos e necessitados, à guetização encapotada e ao desperdício de milhares e milhares de alunos que se atolam num nivelamento por baixo.
Outubro 21, 2012 at 11:00 pm
Esqueçam o ensino obrigatónio porque aprender não é obrigatório.
Outubro 21, 2012 at 11:48 pm
Asneira sobre asneira.
1 – Asneira nos “pressupostos”
2 – Asneira grossa quando se afirma: o que se está a propor implica, “pelo menos a curto prazo, um aumento de custos do sistema educativo”.
3 – Burrice desmentida pelos números: “Quando se invoca a “liberdade de escolha” universal, a primeira coisa que se esquece é justamente que na maior parte do nosso país essa escolha não existe: só há uma escola”
4 – Cegueira todos os dias quando se afirma: “Onde a liberdade de escolha da escola pode fazer algum sentido é nos centros urbanos”
Outubro 22, 2012 at 12:13 am
Há comité central que é cego!
Outubro 22, 2012 at 12:28 am
Estou a ver(?) que há por aqui quem seja rei…
Outubro 22, 2012 at 12:43 am
#3
Fiz essa referência porque em Coimbra foi exactamente o que sucedeu, e esse tema até já foi discutido por aqui há uns tempos atrás; noutros lugares poderá ter sido diferente.
#6
Até há pelo menos uma privada, no centro de Coimbra, que deve ser a última escolha de quem para lá vai, pelo menos a julgar pelos fracos resultados que apresenta nos rankings, ano após anos.
Outubro 22, 2012 at 12:50 am
Apanhou um treze e não aguenta.
Outubro 22, 2012 at 12:57 am
#8
Hoje invertemos os papéis, e está finalmente em condições de me devolver a acusação que por vezes lhe faço de criticar sem apontar respostas ou alternativas…
O texto que escrevi pretendia apenas pretendia apenas revelar alguns embustes e contradições que se escondem atrás do princípio da livre escolha da escola.
Quanto a soluções, dir-lhe-ei que não acho possível promover a igualdade fazendo uso de uma ideologia que efectivamente promove a desigualdade. Se queremos igualdade de oportunidades não podemos andar a criar guetos educativos, se queremos integração não podemos promover um modelo de economia e sociedade baseado na competição desenfreada e na exclusão dos mais fracos.
Defendo uma escola pública de qualidade, que para o ser precisa de todo o tipo de alunos e de corresponder às diferentes necessidades e expectativas que daí decorrem.
E estou convencido que o “nivelar por cima” que também defendo só se pode fazer se houver estímulos para que os alunos que estão “em cima” continuem a ser parte integrante da escola pública. Porque querem, porque vêem eles próprios vantagens nisso e porque não se promove o parasitismo do ensino privado sobre a escola pública.
Outubro 22, 2012 at 1:04 am
Adoro quando alguém se estimula com aquito que o António Duarte (a.d.) deduz por a+b, o último parágrafo é revelador da sua iluminação, ele sabe o que todos querem, ele quer o que todos sabem.
Outubro 22, 2012 at 1:16 am
Quanto ao reitor da mula ruça, a enumeração das alegadas “asneiras” leva-me a crer que devo ter acertado nalguns pontos sensíveis…
Claro que entre os pressupostos do liberalismo estão os que enunciei, embora os ditos liberais não gostem de os ver expostos com esta crueza. Temos pena, mas a ideologia que professam é de facto das mais pobrezinhas que já se inventaram.
Claro que quando se propõe uma política que visa fomentar o crescimento do ensino privado, considerando que a sua superior eficácia e qualidade vai levar a que seja a escolha natural de muitas famílias, é evidente que se espera muitas escolas públicas consideradas más irão definhar e encerrar. Mas até que isso aconteça, e partindo do princípio que acontece de acordo com o previsto, existirá um período de tempo em que o Estado estará a gastar mais o ensino privado sem conseguir as poupanças correspondentes num sistema público sobredimensionado.
Claro que na maior parte do nosso território a liberdade de escolha não existe, porque só há uma escola no raio de muitos quilómetros e é para ela que os transportes escolares transportam os alunos. Claro que em muitos outros casos quando se opta por outra escola é apenas porque um dos pais trabalha lá perto e leva a criança.
Claro que nas cidades grandes há muitas escolas e facilidade nas deslocações, e isso favorece a escolha da escola. Claro que já hoje, e muito antes de os liberais de aviário chegarem ao poder, já os pais escolhem livremente a escola dos filhos, desde que seja pública e que nela haja vaga.
Outubro 22, 2012 at 1:20 am
Já começou a insultar, é assim a liberdade apregoada pelo a.d., vem de uma escola única com muitas palavras para confundir. É a revolução. Ou morte.
Outubro 22, 2012 at 1:23 am
Quanto ao Fafe, não sei se ele quer que lhe responda, mas sempre lhe direi que desconheço as iluminações e os comités centrais que invoca.
Não sei o que os outros querem, ideias defendo apenas as minhas e dúvidas tenho mais do que certezas.
Pim.
Outubro 22, 2012 at 1:27 am
#18
Insultar?…
O que é isso de ser reitor?
Vir para um blogue maioritariamente frequentado por professores afirmar-se reitor é pedir o quê? Que lhe façam uma vénia? Que lhe cantem o “tempo volta para trás”?
Além disso, já conheço a peça de outros carnavais.
Uma mula, sabe-se o que é, não é ofensa para ninguém. Mesmo que seja ruça.
Outubro 22, 2012 at 1:32 am
Agradecido e sonolento, apenas cuido de árvores que crescem; é impressionante o que crescem enquanto durmo. Devias fazer o mesmo.
Outubro 22, 2012 at 1:38 am
#20
Haverá outras que são russas e que cantarão. Sim, cantarão, têm que ser obrigadas ao canto.
Não é, comissário interpretador de quereres?
Outubro 22, 2012 at 1:55 am
Cruzes!, agora é que estive a ler tudo do a.d., é assustadora a fase da aceitação, estás a precisar de um estágio nalgum local em que a minoria faz milagres – sejam eles privados ou muito públicos.
Sei, os milagres têm que ser analisados antes pelo comité gerador de milagres e queres ser santo. Daqueles públicos pelo comité privado.
Outubro 22, 2012 at 1:59 am
Resumindo, a iluminação considera que é proibido, em última vista, que a liberdade seja estúpida, tudo tem que estar quinquenal.
Outubro 22, 2012 at 12:24 pm
Concordo com a análise feita e conheço, em particular, a realidade da “cidade dos estudantes” como aluna e como professora. A pretensa liberdade de escolha só é livre, de facto, para alguns…os outros, provenientes de meios socialmente mais desfavorecidos, “escolhem” a escola que os aceita e, garantidamente, não são todas. Deixo apenas testemunho de um colégio privado com contrato de associação que, na sua origem, foi justificado por, precisamente, se implantar num território com uma população desfavorecida e necessitada de uma resposta educativa adequada e, dois ou três anos após a sua abertura, começou a não aceitar alunos da sua área de “influência” por serem demasiado problemáticos… Os seus transportes próprios e o carimbo “particular” rapidamente lhe deram nome e a procura passou a ser maior do que a oferta, logo, os alunos começaram a vir de localidades cada vez mais distantes e aqueles que inicialmente justificaram a abertura desta escola financiada por todos nós deixaram de ser aceites.
Outubro 22, 2012 at 12:32 pm
Os pressupostos derramados no primeiro parágrafo só são pressupostos do exercício retórico subsquente. Só aqui ou ali coincidem parcialmente com a realidade real e concreta.
Por isso, o texto, como de costume neste escriba, não versa a realidade em que todos nós vivemos. Refere-se, apenas, à realidade que foi explicada ao autor quando ele frequentava os jovens pioneiros antes da queda do muro de berlim..
Julho 29, 2015 at 8:03 am
[…] Texto revisto e adaptado a partir de original publicado a 21/10/2012 n’A Educação do meu Umb… […]