Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar… E a lua, a contar, pára um instante – tem mêdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.
Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido – cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.
Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar…
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d’El-rei. Grande caçada na floresta–galgos brancos e Amazonas negras. Cavalleiros vermêlhos e trombêtas de oiro no cimo dos outeiros em busca de dois que faltam.
Uma gondola, ao largo, e um pagem nas areias de lanterna erguida dizendo pela briza o aviso da noite.
O sapato d’Ella desatou-se nas areias, e fôram calça-lo nas furnas onde ninguem vê. Nas areias ficaram as pègadas de um par que se beija.
Noticias da guerra – choros lá dentro, e crépes no brazão. Ardem cirios, serpentinas. Ha mãos postas entre as flôres.
E a torre morêna canta, molenga, dôze vezes a mesma dôr.
[Almada Negreiros] – Ruínas in Frisos – Revista Orpheu nº1
Julho 1, 2012 at 1:52 am
Saudades de Portugal
1
Nunca como em Veneza
adoro a nossa pobreza
portuguesa;
as nossas casas caiadas,
as nossas praias salgadas,
os burricos berberes,
e na Batalha de pedras douradas
a saia pela cabeça das mulheres.
Ó Veneza oriental,
marítimo tesouro
de púrpura, de mármores e de ouro:
– em Portugal
rico só é o ceu que nos lá cobre.
Portugal teve o mundo – e ficou pobre.
2
Aquele romantismo de Veneza
ah! não, não acabou
enquanto um ruivo sol de dogareza
o Canal Grande todo iluminou.
Sirenetta d´Annunzio cobiçava
certa gôndola em flor;
e a sombra de Musset, no Danieli, lembrava
as cruezas de George, o amor e a dor.
Mas à varanda deste albergo Real
(diz lá, Poesia: onde é que moras tu?)
um hóspede contempla a luz ideal
sentado em almofada de cautchú.
3
Este lugar Anfitrite,
com seu capitão de Ílhavo,
que leva gasolina
a portos da Moirama
e às correntes mais vivas se abandona,
quanto mais me diverte
que o Roma e o Cap Arona!
Vamos na intimidade
do mar, com quem podemos conversar…
– Ó palaces horríveis p´ra viajar!
Coqueteiles de horror! Cadáveres pintados!
Banqueiros! Espiões de todos os Estados! –
Aqui vivo na tolda e ando salgado,
livre do mau-olhado,
e durmo sono fundo
sob as estrelas, té que rompa o dia.
Neste nosso veleiro
poderíamos dar a volta ao mundo
porque ia connosco a Ria
de Aveiro!…
4
Lavrador do Chão,
se semeio trigo
choro-me comigo
e não colho pão.
E se planto vinha
e trato o que planto,
que miséria a minha,
o meu vinho é pranto.
Lavrador do mar,
se semeio espuma
colho e ceifo bruma,
ponho-me a cantar!
Ó seara de vagas
em que os olhos ponho,
que bem que me pagas
em moeda de sonho!…
(In Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa)
Afonso Lopes Vieira
Julho 1, 2012 at 2:07 am
Pinhal do Rei
Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e se esconde
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar:
ditoso o “Lavrador” que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim;
ditoso o Poeta que lançou ao vento
esta canção sem fim…
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
rei D. Dinis, bom poeta e mau marido,
lá vem as velidas bailar e cantar.
Encantado jardim da minha infância,
aonde a minh’alma aprendeu;
a música do Longe e o ritmo da Distância
que a tua voz marítima lhe deu;
místico órgão cujo além se esfuma
no além do Oceano, e onde a maresia
ameiga e dissolve em bruma,
e em penumbra de nave, a luz do dia.
Por estes fundos claustros gemem
os ais do Velho do Restelo…
Mas tu debruças-te no mar e, ao vê-lo,
teus velhos troncos de saudades fremem…
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
são as caravelas, teu corpo cortado,
é lo verde pino no mar a boiar.
Pinhal de heróicas árvores tão belas,
foi do teu corpo e da tua alma também
que nasceram as nossas caravelas
ansiosas de todo o Além;
foste tu que lhe deste a tua carne em flor
e sobre os mares andaste navegando,
rodeando a terra e olhando os novos astros,
ó gótico Pinhal navegador,
em naus, erguida, levando
tua alma em flor na ponta alta dos mastros!…
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
que grande saudade, que longo gemido
ondeia nos ramos, suspira no ar!
Na sussurrante e verde catedral
oiço rezar a alma de Portugal:
ela aí vem, dorida, e nos seus olhos
sonâmbulos de surda ansiedade,
no roxo da tardinha,
abre a flor da Saudade;
ela aí vem, sozinha,
dorida do naufrágio e dos escolhos,
viúva de seus bens
e pálida de amor,
arribada de todos os aléns
de este mundo de dor;
ela aí vem, sozinha,
e reza a ladainha
na sussurrante catedral aonde
toda se espalha e esconde,
e aonde, ecoando a cantar,
se alonga e se prolonga a longa voz do mar.
Afonso Lopes Vieira
(In Onde a Terra se Acaba e o Mar Começa)
Julho 1, 2012 at 9:31 am
Se não tivesse havido o acordo ortográfico de 1945… ainda escreveríamos assim 🙂