Bom dia,
A pedido da Prof. Teresa Rita Lopes e de um grupo de alunos que realizaram a prova referida no “assunto”, bem como dos respectivos encarregados de educação, venho submeter para divulgação na rede
“A Educação do meu Umbigo”
um texto, da autoria de Teresa Rita Lopes, em que exprime a sua opinião sobre este exame. O texto, que segue em anexo, já foi publicado nos blogues jornadasiemo2011.blogspot.com e protestoexame2011.blogspot.com. Para melhor apreciação do assunto, envio também em anexo o enunciado do exame que motivou este parecer.
agradecido pela atençãoPedro Lima
Comentário à Prova Escrita de Português
(12º ano de escolaridade – Julho 2011)
Pediram-me a minha opinião sobre a “Prova Escrita de Português”, a que os alunos do 12º ano de escolaridade foram recentemente submetidos. Hesitei em pronunciar-me publicamente mas a minha antiga costela de militante (sem Partido), obrigou-me a aceitar fazê-lo, perante a constatação de que os resultados obtidos foram catastróficos: alunos que tinham tido altas classificações durante o ano lectivo saíram do exame com negativa. O pior é que isso, para muitos deles, representa a impossibilidade de se habilitarem a entrar nos cursos para que se sentem vocacionados por ficarem, com essa nota a Português, com uma classificação inferior à requerida para o seu acesso. E isso é grave, porque está em jogo o futuro desses jovens. Por isso, arregacei as mangas e pus-me a analisar (como aliás sempre gostei de fazer com os meus alunos e espero que os professores o façam com os seus) o poema de Álvaro de Campos que lhes coube em sorte: um do penúltimo ano de vida, de 16.6.1934, que começa “Na casa defronte de mim e dos meus sonhos”.
A escolha do poema foi infeliz: o seu bom entendimento implicaria um conhecimento aprofundado da poesia de Campos que não pode ser exigido a alunos deste nível. Além do mais, as perguntas não estão bem formuladas nem são as que conduziriam ao entendimento do poema que se quer averiguar se o aluno teve (e que duvido os próprios examinadores tenham tido, perante tais perguntas e os “cenários de resposta” que apresentaram).
A primeira pergunta, sobre “as duas sensações representadas nas quatro primeiras estrofes”, distrai da verdadeira compreensão do poema, que é, do princípio ao fim, a taquigrafia de um monólogo a que Campos se entrega, como em muitos dos seus outros poemas. Através dele, vamos assistindo à marcha do pensamento do Poeta e ao desfilar dos sentimentos que desencadeia. Porque é de sentir sentimentos e não “sensações” que o poema essencialmente trata. Quer o examinador, nesta primeira pergunta, que o aluno fale “das sensações visuais e auditivas” presentes nas quatro primeiras estrofes do poema. É ter em pouca conta a sua inteligência querer apenas fazê-lo provar que o Poeta não é cego nem surdo, porque diz “que viu mas não viu” e que ouve vozes no interior da casa (como se explicita no “cenário da resposta”). Nada nos diz que o Poeta não está à sua secretária, a evocar apenas o que habitualmente vê e ouve: não assistimos a uma verdadeira reacção a um estímulo sensorial. Das pessoas que moram em frente diz, com um verbo no passado (portanto, evocando uma visão, não vendo): “vi mas não vi”. Também as ouve, aparentemente da mesma forma: das “vozes que sobem do interior doméstico” diz que “cantam sempre, sem dúvida”, o que mostra que não as está a ouvir mas a imaginar (logo, é imaginação, não sensação). O verso seguinte “Sim, devem cantar”, reforça a suposição. Seria preciso, ao formular as perguntas, respeitar o facto indesmentível do poema ser um monólogo que o Poeta murmura por escrito enquanto contempla, talvez só com a imaginação, “os outros”– esses vizinhos que vê sem ver porque lhe são inteiramente estranhos.
O que seria preciso entender – e sobre isso sim, questionar o aluno – é que o Poeta olha (ou se imagina olhando) para a casa fronteira à sua como um menino pobre para uma montra de brinquedos: tudo o que aí vê e ouve é uma manifestação dessa “felicidade” que ele não sabe o que é mas cobiça: crianças, flores, cantos, festas. “Que felicidade não ser eu!” Falando várias vezes o Poeta de “felicidade”, seria pertinente questionar o examinando sobre o sentido desse sentimento (bem mais importante do que as sensações ver e ouvir que querem que ele referencie).
Pedir para caracterizar o tempo da infância tal como é apresentado na terceira estrofe do poema, e esperar, como se vê no “cenário da resposta”, que o aluno apenas fale “do ambiente de despreocupação feliz, sugerido pelo acto de brincar”é de uma profunda superficialidade …
Quanto à pergunta seguinte sobre “a relação que o sujeito poético estabelece com os outros” percebe-se, pelo “cenário da resposta”, que o examinador quer que o aluno fale apenas da “diferença”que o Poeta sente que o separa dos “outros”, porque «os “outros” são felizes». O facto do Poeta exclamar “São felizes porque não são eu” mostra que essa “felicidade” é, não um verdadeiro sentimento que os outros experimentem mas o sentimento que o Poeta tem de que é uma sorte ser outra pessoa qualquer, que o verso seguinte “Que grande felicidade não ser eu!” exprime plenamente.
Seria interessante, isso sim, fazer o aluno falar sobre o papel e o significado das interrogações súbitas, nomeadamente “Quais outros?” porque são elas que traduzem e nos fazem assistir ao evoluir do pensamento do Poeta, que se põe em causa a si próprio, isto é, ao que está pensando no decurso do seu monólogo interior. Assistimos, assim, à transição, desencadeada por essas perguntas, de um “eu” para um “nós”: do sentimento inicial de solidão total, de ser apenas um “eu”, uma ilha de solidão, ao de pertencer a um “nós” – a humanidade: “Quem sente somos nós, /Sim, todos nós” – embora cada um a sós consigo. Cada um sente e sofre sozinho mas isso não o impede de fazer parte de um “nós”. Seria demais esperar que o aluno soubesse dizer que é esta uma característica da atitude de Campos: o sentimento de que é uma ilha de solidão, quando diz “eu”, mas de que pertence a um arquipélago, quando pronuncia “nós”. Mas não seria excessivo esperá-lo do examinador.
A última questão presta-se a muitas respostas, não apenas à que é indicada no “cenário de resposta”, que espera referências à “dor” e ao “vazio” “expressos na última estrofe, particularmente no verso «Um nada que dói…»”. Os examinadores não perceberam a sua subtilíssima ironia: depois de afirmar que “já” não está sentindo nada, o Poeta corrige-se, com um sorriso de vaga ironia triste: “um nada que dói”. Se o aluno conhecesse razoavelmente Campos – o que seria demais exigir-lhe mas não ao examinador– referiria que esse incómodo, essa vaga dor é o que, noutro poema, o Poeta chama “o espinho essencial de ser consciente”.
Só uma nota: não estou a querer pôr ninguém em causa: não sei nem quero saber quem elaborou esta “prova”. Estou apenas a obedecer ao meu velho tropismo de querer ser útil. (Que, diga-se de passagem, muitos dissabores me tem trazido ao longo da minha já longa vida.)
Teresa Rita Lopes
Julho 24, 2011 at 8:50 pm
Leio o que escreveu, concordo e sinto orgulho em ser professor. Isto é defender a causa e os alunos. Parabéns!
Julho 24, 2011 at 9:11 pm
Tenho comigo a minha filha que efectuou esta prova. Agradece a explicação efectuada. Fica com esperança de na 2 chamada melhorar a nota. Efectou a segunda prova com a mensagem do Pessoa que diz mais fácil.
Julho 24, 2011 at 9:14 pm
Vale a pena ler. Aliás a qualidade das provas de Português, no meu entender, têm vindo a deteriorar-se. A autora do comentário faz, necessariamente, uma leitura correcta do texto, não obedecendo aos princípios parvos que ultimamente orientam a elaboração das provas, princípios que, transformando as perguntas em equações aritméticas, por causa da paranóia da objectividade na correcção, acabam por não fazer uma leitura correcta ou, no mínimo, uma leitura lógica e consistente do texto. Concordo com ela.
Julho 24, 2011 at 9:17 pm
No comentário anterior, onde se lê “têm”, deve ler-se tem, obviamente.
Julho 24, 2011 at 9:26 pm
A minha filha fez essa prova, contava com 160 e tirou 126. Ficou contente com esta análise, concluindo que interpretou correctamente o poema, divergindo da interpretação feita pelo(s) autor(es) dos critérios de correcção.
Julho 24, 2011 at 9:41 pm
É verdade que o poema permite várias interpretações, mas também é verdade que os critérios não são fechados e os cenários de resposta são apenas isso – «cenários». Corrigi provas com interpretações diferentes dos cenários, mas legítimas, e não penalizei os alunos.
Os critérios até dão abertura para isso…
Julgo que há aqui alguma confusão entre critérios e cenários de resposta. Para além disso, se olharmos bem para os resultados, percebemos que os alunos conseguiram entender o poema, mas não conseguiram escrever as respostas, tendo perdido grande parte da cotação nos aspectos de estruturação do discurso e correcção linguística, o que corresponde a 40% da classificação total do grupo I.
Julho 24, 2011 at 9:55 pm
Gostei do comentário/argumentação sim, um verdadeiro “espinho essencial de ser consciente”.Como prof. de phil. e enc. de ed. apreciei duplamente.
Julho 24, 2011 at 10:15 pm
#1
Eu também defendo “a causa”!
Agradeço esclarecimentos e denúncias que ajudem a repor a Verdade e a impoluta Virtude da Pátria, gravemente ofendida e humilhada por agentes ao serviço de forças ocultas que querem destruir a Pureza da nossa Raça.
Um iluminado (ainda por cima consciente) vale mais do que 100 mil parvos!
Julho 24, 2011 at 10:19 pm
Não tão fora do post…
http://economico.sapo.pt/noticias/morreu-a-escritora-e-ensaista-maria-lucia-lepecki_123278.html
Julho 24, 2011 at 10:26 pm
Faz todo o sentido o texto da Teresa.
Julho 24, 2011 at 10:38 pm
A diferença entre uma professora de Literatura e um grupo de anónimos que faz um exame.
Julho 24, 2011 at 10:42 pm
Também sou mãe de um jovem que fez esta prova e que interpretou o poema na base do sonho, sentimentos e imaginação. O classificador, obcecado pelos cenários de resposta, sublinhou tudo e descontou imenso. Pedimos recurso, no total reclamamos 44 pontos, vamos ver se o próximo classificador sabe mais um pouco o que é interpretar um poema.
Julho 24, 2011 at 10:45 pm
Fiquei louca da vida quando no dia da saída dos resultados vi que o meu filho tinha tirado um 13. Achei que uma nota má.
Na minha ingenuidade pensei que ele tivesse estudado, porque de vez enquanto ia ao quarto dele e via-o a estudar e ele dizia-me que andava a estudar.
Mas não é que o danado depois me disse que não tinha estudado nada porque mesmo que tirasse 18 subia uma décima e nem que tirasse negativa, isso não o impedia de ir para o curso que quer ir?
Fiquei fula.Mas felizmente ele tem média de candidatura alta para entrar no curso que quer.
Julho 24, 2011 at 10:47 pm
O meu português está todo incorrecto mas estou perdida de sono.
Julho 24, 2011 at 10:47 pm
Estando de acordo com quase todas as críticas que TRL faz ao exame, seria tb interessante conhecer as perguntas que, se fosse ela a elaborá-lo, colocaria aos alunos.
Por outro lado, acima de tudo, há que, em definitivo, pôr em questão, como ela faz, se alguns textos escolhidos e cenários de resposta esperados são os adequados a alunos do 12.º ano. Na minha opinião, que vale pouquíssimo, a pergunta 4, por exemplo, e o que lhe está associado, não.
Julho 24, 2011 at 11:44 pm
O actual programa de Português, comum aos alunos de Ciências e Humanidades, é um programa medíocre para não dizer imbecil. Elaborado numa perspectiva utilitária e tecnicista, menospreza a vertente literária,menorizando as capacidades dos jovens, no pressuposto de que os alunos não são capazes de ler textos complexos. Mas, como seria vergonhoso retirar de vez a literatura, lá estão alguns autores portugueses, mas para o estudo dos quais o tempo é menos que mínimo. Esta falta de tempo é particularmente sentida quando se aborda a poesia de Fernando Pessoa, dada a sua complexidade. E, ao contrário do que diz o director do GAVE,( “Público”, de 24.07.2011), os professores lá vão fazendo das tripas coração para ultrapassar esse obstáculo, e procuram abordar os textos literários com o respeito que eles merecem e com o respeito que os próprios alunos merecem, porque os alunos não são descompensados. Simplesmente, não se fazem omoletes sem ovos.Por sua vez, o GAVE, talvez para tornear a questão da mediocridade do programa, faz exames “exigentes”.Ora, onde está a exigência deste exame? O que este exame revela é, como fica implícito, e com razão, no comentário de Teresa Rito Lopes, é estupidez. E um exame estúpido, nas perguntas e nos critérios de correcção, não permite que os alunos revelem as suas reais competências.
Julho 25, 2011 at 12:01 am
Muito obrigada, Professora Teresa Rita Lopes.
Que orgulho em ter sido sua aluna! Que saudades!
Bem haja!
Julho 25, 2011 at 1:16 am
Em vez de pedirem à senhora para fazer comentário post mortem, e que tal se a convidassem para elaborar os exames? Podia ser que ela até aceitasse.
Julho 25, 2011 at 1:39 am
E o que é mais grave disto tudo é que um ignorante maior de 23 anos, através de um simples relatório de uma peroração de uma “aula” de um professor mandatado para empurrar esses maiores para dentro da respectiva escola, tem acesso garantido mesmo que só seja capaz de assinar o seu nome de cruz. E não há quem ponha cobro a isto.
Julho 25, 2011 at 1:50 am
A parte final do meu anterior comentário deverá passar à seguinte redacção: Não é altura de pôr cobro a isto?
Julho 25, 2011 at 6:22 pm
Teresa Rita Lopes é um dos maiores especialistas contemporâneos
em Fernando Pessoa,
tem centrado o seu trabalho académico na obra deste poeta
e dedica-se especialmente à divulgação
da parte inédita da sua obra.
http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Teresa_Rita_Lopes.htm
Julho 26, 2011 at 12:30 pm
Sou uma aluna média, fui com 17 de classificação final ao exame e tive 9,6 que nem dá para me candidatar ao curso que quero – Direito – nem à universidade que quero. Sempre fui boa aluna a Português, gosto imenso de Fernando Pessoa e confesso que me senti mal comigo própria pela nota que tive. Não me vou puder candidatar na primeira fase ao que realmente queria, estou à espera da nota da segunda que espero ser melhor. Desejo horrores ao eu professor corrector porque fez com que os meus sonhos se demoronassem todos. Não consigo compreender como é que isto me aconteceu e sinto-me revoltada.
Os alunos dos cursos profissionais fazem um ano zero e entram na universidade directamente (sem exames), eu que sou boa aluna, empenhada, esforçada, interessada, estudiosa ao longo de três anos, lutanto por uma média e por objectivos perdi tudo em duas horas e meia de exame, não se compreende. Continuem a pensar só nos “números” para a UE e criem um país de “engenheiros” a dizer “a gente vamos, a gente fazemos, sinte-se calor, vamos-se embora” como diariamente obervo. A hierarquia é útil e necessária, já banalizaram demasiado a licenciatura, pensem em agir, a igualdade é uma utopia e uma anarquia!
Junho 15, 2012 at 1:56 am
A Eugénia é o espelho de muitos alunos que passam pela mesma situação, não sei se ninguem vê ou ninguêm quer ver, mas o que é certo que se nós obrigasse-mos os senhores do GAVE e os nossos governantes, sempre com vontade de dificultar, a fazer estes testes nem 9,6. É facil exigir dos outros quando eles não podem exigir de nós.É uma VERGONHA.