Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.
Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.
Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante…
Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.
Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.
Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!
No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa,
Como chuva a cair numa planta abrasada,
A fornalha em que a Dor se transmuta em Beleza!
Pensar, é certo, eleva o espírito mais alto;
Sofrer torna melhor o coração; depura
Como um crisol: a chispa irrompe do basalto,
Sai o oiro em fusão da escória mais impura.
A Alegria é falaz; só quem sofre não erra,
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que O louve;
A Alma, na oração, desprende-se da terra;
Jamais o homem é vão diante de Deus que o ouve!
E contudo, — ilusão!—basta que ela sorria,
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar,
Vamos logo em tropel, no capricho do dia,
Como ébrios, evoé! atrás dela a cantar!
Mas se ela, de repente, ao nosso olhar se furta,
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso;
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta,
Que mal chega a doirar as cortinas do berço.
Às vezes, essa luz, de tão frágil encanto,
Vem ainda banhar certas horas da Vida,
Como um íris de paz numa névoa de pranto,
Crepitação, fulgor duma estrela perdida.
Então, no resplendor dessa aurora bendita,
Toma corpo a ilusão, e sem ânsias, sem penas,
O espírito remoça, o coração palpita
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas!
Mas efémera ou vã, a Alegria… que importa?
Deusa ingénua ou bacante, o seu riso clemente,
Quando, mesmo de longe, ecoa à nossa porta,
Deixa em louco alvoroço o coração da gente!
Momentânea ou falaz, é sempre um dom divino,
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer…
Pudesse eu celebrar teu louvor no meu Hino!
Momentâneo, falaz encanto de viver!
O teu sorriso enxuga o pranto que choramos,
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes!
Nesta sentimental língua que nós falamos,
Só a Dor e a Paixão têm acordes sublimes!
Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (…) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor. Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.
Julho 23, 2011 at 9:46 am
Local ideal para passear no verão às 3h00 da tarde.
Julho 23, 2011 at 9:54 am
Como te invejo, meu amigo.
Pudera eu isolar-me dessa forma penosa.
Julho 23, 2011 at 10:11 am
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.
Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso.
Miguel Torga
Julho 23, 2011 at 10:23 am
Julho 23, 2011 at 10:31 am
Julho 23, 2011 at 10:41 am
Vive o instante que passa. Vive-o intensamente até à última gota de sangue. É um instante banal, nada há nele que o distinga de mil outros instantes vividos. E no entanto ele é o único por ser irrepetível e isso o distingue de qualquer outro. Porque nunca mais ele será o mesmo nem tu que o estás vivendo. Absorve-o todo em ti, impregna-te dele e que ele não seja pois em vão no dar-se-te todo a ti. Olha o sol difícil entre as nuvens, respira à profundidade de ti, ouve o vento. Escuta as vozes longínquas de crianças, o ruído de um motor que passa na estrada, o silêncio que isso envolve e que fica. E pensa-te a ti que disso te apercebes, sê vivo aí, pensa-te vivo aí, sente-te aí. E que nada se perca infinitesimalmente no mundo que vives e na pessoa que és. Assim o dom estúpido e miraculoso da vida não será a estupidez maior de o não teres cumprido integralmente, de o teres desperdiçado numa vida que terá fim.
Vergílio Ferreira
Julho 23, 2011 at 10:48 am
Hino à Alegria
Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.
Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante…
Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.
Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.
Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!
No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir, de surpresa,
Como chuva a cair numa planta abrasada,
A fornalha em que a Dor se transmuta em Beleza!
Pensar, é certo, eleva o espírito mais alto;
Sofrer torna melhor o coração; depura
Como um crisol: a chispa irrompe do basalto,
Sai o oiro em fusão da escória mais impura.
A Alegria é falaz; só quem sofre não erra,
Se a Dor o eleva a Deus, na palavra que O louve;
A Alma, na oração, desprende-se da terra;
Jamais o homem é vão diante de Deus que o ouve!
E contudo, — ilusão!—basta que ela sorria,
Basta vê-la de longe, um momento, a acenar,
Vamos logo em tropel, no capricho do dia,
Como ébrios, evoé! atrás dela a cantar!
Mas se ela, de repente, ao nosso olhar se furta,
Todo o seu brilho é pó que anda no sol disperso;
A Alegria perfeita é uma aurora tão curta,
Que mal chega a doirar as cortinas do berço.
Às vezes, essa luz, de tão frágil encanto,
Vem ainda banhar certas horas da Vida,
Como um íris de paz numa névoa de pranto,
Crepitação, fulgor duma estrela perdida.
Então, no resplendor dessa aurora bendita,
Toma corpo a ilusão, e sem ânsias, sem penas,
O espírito remoça, o coração palpita
Seja a nossa alma embora uma saudade apenas!
Mas efémera ou vã, a Alegria… que importa?
Deusa ingénua ou bacante, o seu riso clemente,
Quando, mesmo de longe, ecoa à nossa porta,
Deixa em louco alvoroço o coração da gente!
Momentânea ou falaz, é sempre um dom divino,
Sol que um instante vem a nossa alma aquecer…
Pudesse eu celebrar teu louvor no meu Hino!
Momentâneo, falaz encanto de viver!
O teu sorriso enxuga o pranto que choramos,
E eu não sei traduzir a ventura que exprimes!
Nesta sentimental língua que nós falamos,
Só a Dor e a Paixão têm acordes sublimes!
António Feijó, in ‘Sol de Inverno’
Julho 23, 2011 at 10:51 am
A Saturação da Servidão
Hoje estão em causa, não as paradas, que é tudo em que as multidões são adestradas, ou a guerra, a que se convidam; está em causa toda uma dinâmica nova para criar o habitat duma humanidade que atingiu a saturação da servidão, depois de há milénios ter dado o passo da reflexão. As pessoas interrogam-se em tudo quanto vivem. A saturação da servidão não é uma revolta; é um sentimento de desapego imenso quanto aos princípios que amaram, os deuses a que se curvaram, os homens que exaltaram. (…) Mas foi crescendo a saturação da servidão, porque a alma humana cresceu também, tornou-se capaz de ser amada espontaneamente; tudo o que servimos era o intermediário do nosso amor pelo que em absoluto nós somos. Serviram-se valores porque neles se representava a aparência duma qualidade, como a beleza, o saber, a força; esses valores estão agora saturados, demolidos pela revelação da verdade de que tudo é concedido ao corpo moral da humanidade e não ao seu executor. Um grande terror sucede à saturação da servidão. Receamos essa motivação nova que é a nossa vontade, a nossa fé sem justificação a não ser estarmos presentes num imenso espaço que não é povoado pela mitologia de coisa alguma. Somos novos na nossa velha aspiração: a liberdade é doce para os que a esperam; quando ela for um facto para toda a gente, damos-lhe outro nome.
Agustina Bessa-Luís, in ‘Dicionário Imperfeito’
Julho 23, 2011 at 10:52 am
Não é Cat, é Yusuf!
Julho 23, 2011 at 10:54 am
Flor de Ventura
A flor de ventura
Que amor me entregou,
Tão bela e tão pura
Jamais a criou:
Não brota na selva
De inculto vigor,
Não cresce entre a relva
De virgem frescor;
Jardins de cultura
Não pode habitar
A flor de ventura
Que amor me quis dar.
Semente é divina
Que veio dos Céus;
Só n’alma germina
Ao sopro de Deus.
Tão alva e mimosa
Não há outra flor;
Uns longes de rosa
Lhe avivam a cor;
E o aroma… Ai!, delírio
Suave e sem fim!
É a rosa, é o lírio,
É o nardo, o jasmim;
É um filtro que apura,
Que exalta o viver,
E em doce tortura
Faz de ânsias morrer.
Ai!, morrer… que sorte
Bendita de amor!
Que me leve a morte
Beijando-te, flor.
Almeida Garrett, in ‘Folhas Caídas’
Julho 23, 2011 at 11:03 am
Julho 23, 2011 at 11:11 am
Julho 23, 2011 at 11:14 am
Julho 23, 2011 at 11:16 am
Julho 23, 2011 at 11:18 am
Comemora-se hoje “O Dia da Poesia” e dei o meu contributo. Há mar e mar, há ir e voltar …!
Julho 23, 2011 at 11:19 am
Julho 23, 2011 at 11:22 am
Julho 23, 2011 at 11:23 am
Julho 23, 2011 at 11:33 am
A poesia não é fita com palavras, é feita com o desespero de não sermos deuses.
Agustina (mais ou menos com estas palavras)
Julho 23, 2011 at 11:34 am
Felizes os que podem abrir a janela e ver paisagens destas!
(Acabei de ver o post de ontem “Do Querer”, comentários a não perder!)
Julho 23, 2011 at 11:34 am
…feita…
Julho 23, 2011 at 11:39 am
http://bulimunda.wordpress.com/2011/07/09/a-imensa-imoralidade-da-existencia/
Julho 23, 2011 at 8:28 pm
Quanta miséria! Não tem nem um eucalipto para amostra!
Julho 24, 2011 at 12:43 am
Parecido com a zona de refúgio de talibãs. Afinal o Fafe pode muito bem ser o Bin Laden, e a gente a julgar que o gajo estava morto.