OQEQT a síndrome dos políticos gafanhotos
O que é que tem? Lançado assim, na mais pura inocência, produz em nós um silêncio de morte. Gera um nó na garganta. Um jovenzito, com pouco mais de seis anos, salta em cima de uma tampa de contentor do lixo sob o olhar embevecido dos companheiros espigadotes que, por perto, lhe admiram a ousadia e, num quase êxtase, lhe veneram as qualidades de líder “vencedor”. Há gente fingindo não ver e a passar adiante, evitando chatices com o pequeno bando de miúdos de rua. O contentor há muito que não abre e fecha com a destreza requerida, mas, surpreendentemente, vai resistindo, com garbo, ao teste de resistência de materiais do pequeno gafanhoto. O metal, amassado de façanhas várias, limita-se a soltar, a espaços, roncos de dor, infernizando os ouvidos da vizinhança. De uma varanda, um adulto intima-o: “Sai já daí! Não vês que isso não se faz?!”. E o pequeno, indiferente a meio de um pinote, dispara desarmante o desafio: “O que é que tem?”. Noutra janela, um velho de pijama ainda balbucia qualquer coisa, mas, vencido, desiste de pôr fim à chinfrineira e regressa pacatamente ao “vale de lençóis”. Há-de cansar-se!
Foi a primeira vez que me confrontei com a doença. E não me esquecerei da carita provocante em desalinho. Podem não acreditar, mas nada há mais inibidor (e estranhamente intimidador…) na comunicação entre dois seres humanos do que constatar, no interlocutor, este alarmante grau de incompreensão do nosso discurso.
Estamos preparados para explicar o complexo, mas não para legitimar a dúvida que temos como óbvia. “O que é que tem?” Lançado assim, na mais pura inocência, produz em nós um silêncio de morte. Gera um nó na garganta. Faz-nos pensar se efectivamente o que dissemos faz sentido ou se a razão não estará no microdelinquente destruidor do mobiliário urbano que, desta forma, esbanja (achamos nós!) ou usufrui (imagina ele!) dos nossos impostos.
Estou em crer que, fossemos nós suecos, finlandeses (vide a quase total ausência do fenómeno de corrupção), e nem um só adulto teria passado indiferente. Que os bens comuns são de todos e o civismo serve-se em biberon. Mas, por cá, é diferente.
“O que é que tem?” Martela-nos nos neurónios. Somos inconscientemente levados a pensar que, se calhar, “não tem nada!”. A interpelação que, segundos antes, nos parecia de uma clareza meridiana pode, afinal, dever-se, em rigor, apenas ao nosso mau feitio, ao nosso irredutível conservadorismo social, que nos impele a coarctar a liberdade de movimentos do interlocutor, precipitando-nos em julgamentos de carácter. Ora, em Portugal, como se sabe, todos julgamos tudo, mas há uma coisa sagrada que ninguém, em caso algum, pretende julgar: o carácter. Seja ele de quem for.
O carácter é, aliás, visto como uma qualidade absolutamente indiferente para o exercício de qualquer tipo de funções: administradores, banqueiros, ministros, presidentes de câmaras, dos governos regionais, do Conselho ou da República. Se há coisa que não interessa nada são avaliações de carácter. Interessa-nos o que lêem, o que vestem, o que comem, mas jamais nos interessa o respectivo carácter.
É certo que o povo continua, na sua simplicidade, a distinguir os homens entre os que são “bons” ou “maus carácteres”. Mas isso é coisa de gente iletrada.
A cena que descrevi passou-se, vai para vinte anos, nos subúrbios da cidade. Num bairro tranquilo, onde a frequência dos caixotes do lixo mostrava à exaustão que haveria de mostrar-se problemático. Já é. Fugi a tempo para o centro da cidade e perdi-lhe o rasto. Voltei lá há semanas. Os meninos gafanhotos cresceram. Metem medo. Vagueiam, em pequenos grupos ao acaso. Espreitam-nos das esquinas.
Dizem-me que o cenário é igual à semana. Os media relatam os confrontos frequentes entre grupos rivais. A estação, onde antes apanhava o comboio para Lisboa, é agora palco quase diário de desacatos.
Durante anos, achei que a síndrome (OQEQT) era uma espécie de vírus social. Desagregador, mas limitado às chamadas populações de risco. Mas não é. Lembro-me desta cena real sempre que me confronto com o estado da actual da nossa política. Valeria a pena estudar os mecanismos de disseminação do vírus e os seus efeitos de contágio. Hoje ataca todas as classes sociais, grupos profissionais, estruturas partidárias, magistraturas. A crise internacional mostra, aliás, que não se trata de uma simples epidemia nacional, mas há risco de verdadeira pandemia. Há mesmo já toda uma geração de políticos nacionais e estrangeiros afectados.
Berlusconi, por exemplo, teve ainda esta semana uma crise pública da doença na sua variante mais perigosa NVQEOM (não vejo qual é o mal?) quando o alertaram para o facto de a população de L’Aquila se ter sentido indignada com a comparação, feita horas antes, do campo de desalojados a um camping de fim-de-semana, onde haveria de desfrutar do facto de se ter “tudo o que é possível disponível: abrigo, assistência médica, refeições quentes, etc…”.
Mas, por cá, os exemplos são de uma frequência alucinante. Tente-se perguntar aos autarcas de Braga, que por unanimidade votaram a nomeação de Domingos Névoa, condenado por corrupção, para presidente de uma empresa municipal, como foi possível a nomeação, e a probabilidade de assistirmos à mesma unanimidade na resposta “o que é que tem?” será de 100 por cento.
Lopes da Mota? Almoços e conversas que talvez fosse razoável não ter? NVQEOM.
Para quem não conheça a doença, o QEQT é um vírus. O principal sintoma é de, perante uma pergunta óbvia para o interlocutor, o doente não conseguir balbuciar mais do que uma variante simples da expressão “o que é que tem?”, por incapacidade de descodificar o porquê do respectivo conteúdo. A doença é genuína e nunca o perguntador falseia o seu espanto. Quem sofre do QEQT, não é um falsário a fazer-se de ingénuo. Não é um tratante a fingir-se de sonso. É simplesmente alguém que, no pico da doença, não é genuinamente capaz de discernir o cerne da questão. Não entende o ponto. De tal forma lhe é estranha a lógica mais corrente, o raciocínio mais normal. E ainda que a pergunta lhe seja colocada, por todo o mundo, e em uníssono, ele não conseguirá ver nela mais do que uma gigantesca ameaça, uma cabala de todos contra si. Nestes casos, o povo comenta que o doente “deixa de ter vergonha na cara!”, porque é comum ouvi-los dizer, com desfaçatez, em público o que não seria suposto assumirem sequer em privado. Mas a verdade é que a vergonha não lhes abandona apenas a cara, pode subitamente esvair-se do corpo todo, da toga, do uniforme, do fato e gravata, da própria gravata. É por isso que há tantos crimes cometidos por colarinhos brancos em que só o colarinho vai preso.
Público, 10 de Abril de 2009
Abril 10, 2009 at 9:48 am
E a recusa do governo em inverter o ónus de prova do caso dos enriquecimentos ilícitos é só mais um exemplo da falta de vergonha que essa malta fixe tem.
E o facto de ter sido atribuído à Mota Engil a gestão do terminal de contentores em Alcântara sem concurso público idem.
OQEQT?
E o Isaltino, que recebia dinheiro no seu gabinete? OQEQT?
Naaaaada.
Abril 10, 2009 at 10:24 am
uma mistura à base de gordura butírica na forma de emulsão do tipo água em óleo, utilizada na indústria alimentar e contendo os ingredientes seguintes (teores em peso): matérias graxas 72,5% (matérias graxas sobre base seca 98,8%), proteínas 0,996% (proteínas sobre base seca 1,4%), lactose 1,4%, umidade 26,6% (esta pasta de espalhar láctea é às vezes denominada “queijo fresco com alto teor de matérias graxas”) é classificada no código SH040520
Abril 10, 2009 at 10:29 am
O Isaltino, declarou para todas as TVs deste País: Todos faziam porque é que eu não havia de fazer? Ainda por cima isto da corrupção é uma questão de contágio, só para os eleitos é claro.
É caso para dizer: Os tiranos fazem planos para cem anos…
Abril 10, 2009 at 10:45 am
OQEQT?
Portugal em todo o seu esplendor!
Abril 10, 2009 at 11:08 am
Fabuloso texto!
Abril 10, 2009 at 11:15 am
Muito pertinente este texto.
Já passei por uma situação algo parecida com esta mas a 50 metros da escola. Meti-me na confusão e ouvi o OQEQT. Mas não me calei, Não podia ir embora sem resolver aquilo. Já que me tinha envolvido ia até ao fim.
Mas nem todos os colegas pararam…
É lamentável neste país à beira mar plantado ouvir frequentemente e até de sítios que nada têm a ver com a Escola, dizia eu, ouvir o cada vez mais frequente OQEQT.
Não duvido que até no seio familiar um petiz
com idade de levar uma boa lambada na hora certa, os paizinhos ficam impotentes perante OQEQT…
Quando os exemplos vêm de onde menos se espera, acredito que tem de haver uma resposta ao OQEQT!
Quer passe pela cultura, pela família, pela política e outros mais, temos que retaliar com algo mais forte! De momento não me ocorre nenhuma sigla. Mas ao longo do dia posso lembrar-me!´
Tenho dito! (Certa ou errada, é a minha opinião!)
Abril 10, 2009 at 11:27 am
“O que é que tem?” – “Não sou só eu” – “Eu só estava…” – são as três expressões que me fazem ansiar pela reforma, mesmo antecipada.
Abril 10, 2009 at 11:33 am
# 7 Sea River
““Não sou só eu”…” essa então é das piores!
Se os outros o fazem porque “raio” eu não posso fazer também?
Mau sinal, muito mau sinal. E não é só de agora. Já é uma tradição argumentar, (diria antes, responder) com essas frases.
Mas, colega Sea River, não anseie pela reforma antecipada. Não é caso para isso.
É mais um desafio para nós!
😉
Abril 10, 2009 at 1:24 pm
A corrupção é generalizada e tem o aval do Estado
http://www.raivaescondida.wordpress.com/2009/04/10/10582/
Abril 13, 2009 at 11:21 am
Não estou de acordo com uma coisa: ” …só os colarinhos vão presos…”. Não, nem sequer os colarinhos vão porque pode implicar penalizações para o Estado em sentido amplo porque em restrito não se passa nada. Mas a culpa não é do estado estrito mas do Estado Lato que são os cidadãos que como nós “ladramos” e a caravana passa do tipo do cavalo do general:cagando, andando e ouvindo os aplausos das massas estupidificadas,ignorantes e medrosas, à boa maneira dos séculos passados, que paulatinamente se vão construindo com estas estratégias de crise, de desemprego, de marketing e fundamentalmente da Educação, Formação ,Comunidade e Família…
Dividir para reinar ainda que seja um monte de destroços e escravos