A forma como está a ser conduzido o não-debate sobre a eventual reforma dos primeiros dois ciclos da escolaridade básica é sintomático da forma de agir do actual poder político em matéria educativa e da forma como procura condicionar as suas conclusões, de modo a corresponderem às medidas entretanto já colocadas em prática.
A este respeito compreendem-se notícias como a de hoje no Expresso em que se dão como adquiridas e positivas medidas como o alargamento do primeiro ciclo da escolaridade para seis anos, alegando-se que é a norma na Europa, mas depois citando como exemplos apenas quatro países, um dos quais está actualmente em ebulição na área da Educação (França) e outro que apresenta um desempenho que está longe do top europeu (Espanha).
Quem anda por estes ambientes, sabe que o assunto era para ser lançado para o público em Março passado, mas que sofreu algum atraso na sequência das imprevistas manifestações de docentes durante o mês de Fevereiro e consequente marcha por Lisboa no dia 8 de Março.
Surge agora em Maio, em pleno final de ano lectivo, com o recurso a um estudo do CNE (estudocne), ao apoio explícito da Confap e a uma postura discreta do ME nos bastidores de tudo.
A ideia subjacente a este debate até é interessante e passa pela forma de melhor conceber uma reconfiguração da nossa escolaridade obrigatória e respectivos ciclos. O problema é a forma como se quer apresentar como única boa opção o que não passa de uma posição de facção, para mais sendo uma posição que tem escassa fundamentação empírica.
De alguns anos para cá existe uma grupo de pressão dentro e na periferia do ME e em alguns sectores das Ciências da Educação que considera útil a fusão entre os actuais 1º e 2º CEB num único ciclo de seis anos, leccionado em regime de monodocência, com ideias variáveis quanto à necessária coadjuvação.
- Há os que consideram que deve existir um modelo assente numa monodocência generalista para os seis anos, com eventual coadjuvação por parte de alguns docentes na área das Expressões (Ed. Musical, Ed. Física) e do Inglês ou mesmo das TIC.
- Há os que preferem um modelo mais flexível, baseado na criação de equipas multidisciplinares para os mesmos seis anos que, mesmo tendo um docente com funções de coordenação e maior ligação e responsabilidade pelo desenvolvimento do trabalho pedagógico com a turma, depois daria um maior papel a professores, não-tão-generalistas-quanto-isso, para as áreas da “letras”, das “Ciências” e das “Expressões”.
O problema é que, na prática, este Governo já optou pelo modelo que pretende, que é o do professor «generalista» num regime de monodocência progressivamente coadjuvada, pois assim não se compreenderia como decretou/aprovou a criação de cursos destinados a formar docentes com um novo perfil de habilitações, que nos dias de hoje não correspondem a nenhuma situação profissional existente e só se compreendem se estiver na forja uma redefinição das habilitações para a docência, como se pode ler hoje nas páginas do Sol
O actual estudo do CNE é sintomático a este respeito pois nas suas recomendações e considerações finais (pp. 114ss) acaba por recomendar «o regime de mono-docência com progressiva co-adjuvação», quando reconhece que existe um «modelo mais interessante e mais flexível assente em “equipas multidisciplinares”».
Ora isto não deixa de ser algo estranho, pois um estudo que recomenda aquela que não considera ser a solução mais interessante é algo bizarro. Como se dissesse: «OK, eu recomendo esta sobremesa, mas aquela ali é melhor». Estranho, muito estranho. No mínimo. E não me venham dizer que não posso escrever isto, porque estou a pôr em causa a boa cidadania dos membros do CNE, como já fui acusado de fazer.
E é aqui que somos, pela força das próprias palavras do estudo, a duvidar de muito do que envolve esta discussão, pois é legítimo inferirmos que podem existir recomendações que não são ditadas pela melhor solução, mas sim por algo diverso. E o que é esse algo diverso?
Para mim, é a necessidade de validar, a posteriori, a decisão política e escassamente fundamentada, de criar cursos bolonheses de «professor generalista».
O que seria agora se os estudos independentes do CNE recomendassem explicitamente uma solução incompatível com os cursos já em funcionamento e os mestrados aprazados para aprovação pelo MCTES?
Ia ser o bom e o bonito!
Por isso mesmo duvido imenso da transparência deste não-debate, pois já se sabe a que conclusões será necessário chegar. As dúvidas de detalhe apresentadas pelo representante da Confap em recentes aparições públicas, assim como algumas reservas do SE Lemos sobre o mesmo assunto, mais não são do que efeitos de estilo, rodriguinhos formais indispensáveis para dar uma aparência de seriedade a algo que já está pré-determinado e que só com uma grande luta poderá ser travado: o ME quer colocar professores «generalistas» a leccionar um ciclo de escolaridade de seis anos, coadjuvados por sub-docentes em algumas áreas mais específicas, num modelo que irá acentuar bastante as defici~encias estruturais do desempenho dos nossos alunos.
Porque o que esta gente esquece é que alguns dos países que chegaram a este modelo, só lá chegaram depois de consolidada a escolaridade básica (e não só) de toda a população e não numa fase intermédia desse processo. Porque a solução é boa para sistemas de ensino em «velocidade de cruzeiro», funcionando sobre uma alfabetização formal e funcional plena, atingida há pelo menos um par de gerações. A Finlândia não adoptou este modelo antes de ter uma escolaridade de massas plenamente atingida.
O que não é o nosso caso.
Mas ninguém parece querer notar.
Porque a deficiência da aplicação deste modelo à Educação em Portugal não passa (só) por questões das defesa de condições laborais e de carreira de dezenas de milhar de docentes, passa essencialmente pela sua inadequação ao estado de desenvolvimento educacional (cultural e social) em que nos encontramos.
Maio 24, 2008 at 7:01 pm
[…] […]
Maio 24, 2008 at 7:15 pm
Excelente texto,Paulo.
Isto é um exemplo paradigmático de como funciona bem a central de propaganda do Governo, com todos os peões a desempenhar o seu papel na perfeição e os media a correr atrás consciente ou inconscientemente.
Os pais não dizem nada???
Maio 24, 2008 at 7:26 pm
Eis como funciona a brilhante máquina de propaganda deste governo, induzindo na opinião pública, a necessidade de um professor generalista do 1º a o 6º ano de escolaridade.
Maio 24, 2008 at 7:34 pm
Em França, a Escola Primária tem 5 anos e não 6.
Subdivide-se da seguinte forma:
Cycle 2: duração de 2 anos (CP e CE1)
[O Ano anterior ao CP faz parte simultaneamente deste Cycle 2 e do Cycle 1 (Maternelle), daí dizer -se que o Cycle 2 tem 3 anos. Porém, esse primeiro ano do Cycle 2 é realizado na Pré e não na Escola Primária. Funciona como ano preparatório.]
Cycle 3: duração de 3 anos (CE2 ; CM1; CM2 )
Aparentemente, parece confuso…Como tal, os senhores jornalistas, na pressa, coitados, enganam-se.
Assim, o Professeur des Écoles pode trabalhar com crianças desde os 2 (1º ano da Maternelle; Cycle 1) até aos 11 anos (CM2, o último ano da Primária, Cycle 3).
Depois é o Collège e um prof por disciplina (à semelhança do que acontece por cá nos 2º e 3º ciclos).
Os professores generalistas não chegaram lá, nem parece que tenha por lá soado a chegada dessa aberração. Será que as crianças francesas são imunes a traumas causados por transições bruscas?
Maio 24, 2008 at 7:48 pm
Se a “coisa” vai para o Expresso é porque tem asas para voar. O Expresso é cada vez mais o jornal do regime só(cretino)… e do pensamento único neoliberal P.U.N.
Maio 24, 2008 at 8:07 pm
Estas manobras ministeriais só confirmam que a escola pública não serve os alunos, não serve os professores e não serve o país!
A escola pública portuguesa está ao serviço dos famintos por dinheiro do orçamento de estado e toda a gente com dois dedos de testa percebe facilmente que são eles: “cientistas” da “educação”, escolas superiores de “ciências” da “educação”, departamentos dessa ciência oculta, “professores” que fugiram a sete pés das escolas e que hoje pululam nos imensos tentáculos do monstro burocrático a que pomposamente denominamos de Ministério da Educação, personalidades que ávidas de protagonismo saloio se prestam a oferecer os seus serviços para encher as escolas de missões e mais missões e ainda mais missões.
Alunos? São uma chatice, pá! Professores? São umas melgas, pá!
🙂
Maio 24, 2008 at 8:08 pm
Isto aqui e como o Alice no Pais das Maravilhas.
Primeiro a sentenca, e depois o julgamento.
E como tal, primeiro as conclusoes e depois os estudos.
Maio 24, 2008 at 8:08 pm
ooops. que são eles não; quem são eles 🙂
Maio 24, 2008 at 9:15 pm
E os sindicatos? Quem têm dito sobre isto?
Que eu tenha dado conta, nada. Confesso que visitei a página da FENPROF e não vi nada. Pode ser que outro sindicato… não sei. Digam-me se for injusto.
É que esta alteração tem profundas implicações laborais. Ou não tem?
Eu penso que eles sabem isso e se não falam é porque estão de acordo. Mais tarde lá virão fazer umas reuniões e tal, para parecer que são sindicatos e são sindicalistas. É que o sonho dos nossos sindicalistas era estarem todos a banhos numa ESE qualquer ou no ISCTE ou numa Direcção Regional ou… num Ministério. Isso sim o Ministério… aí eram de facto importantes. Por isso não podem estar sempre do contra, nem podem estar sempre atentos às manobras. Falar sim, mas depois de já ser impossível fazer inversões de marcha.
Maio 24, 2008 at 9:19 pm
O que a CNE está a dizer é que estão condicionados a dizer apenas aquilo que o Trio Maravilha impôs que se dissesse.
Eles acham que as equipas multidisciplinares é que deviam ser recomendadas, mas como sabem que o Trio
não quer, dizem-lhes auilo que querem ouvir.
Aliás, é ridícula a posição que assumem. Nem percebo como é que se mantêm em funções a fazerem uma figura ridícula dessas! Ou bem que são livres de recomendarem, ou não!
JVCMatias
Maio 24, 2008 at 9:30 pm
Já era projecto do governo PSD esta medida, há muito que se fala na fusão, no professor generalista.
A Fenprof desde o início que se pronunciou em desacordo, por ser uma medida economicista e com poucas preocupações pedagógicas. Outro assunto que esteve na moda foi o par pedagógico no 1º ciclo, para preparar para os vários professores no 2º ciclo.
Estes Governos não sabem o que querem, atiram loas ao ar sem linhas de orientação coerentes.
Cobaias vamos sendo mais os alunos e eles só têm a obsessão reformista não interessa para quê.
A chamada paranóia da mudança.
O mexilhão que se lixe.
Algumas autarquias chegaram a preparar edifícios para o 1º e 2º ciclo e funcionam assim actualmente.
Maio 24, 2008 at 10:25 pm
Parabéns Paulo pelo seu excelente post.
É sempre com prazer e satisfação que leio o seu blob.
Maio 24, 2008 at 10:26 pm
Era blog e não blob 🙂
Maio 24, 2008 at 10:58 pm
É quase sempre assim:não se procur como é que as crianças podem ter uma melhor educação, mas sobre que manobras governo e sindicatos estarão a congeminar para os seus pérfiods propósitos.
A propósito é lamentável que Mário Nogueira reconheça o estatuto de professores aos ‘professores’ das AEC’s e nada de significativo tenha feito por eles até hoje. Se há professores que se podem queixar sõa esses. Mas a maior parte deles está num estatuto dúbio e numa situação em que não lhes é possível reclamar ou reivindicar seja o que for. Por exemplo não podem fazer greve. É assim indigno a forma como os professores como classe permitem que estes ‘colegas’ são tratados.
Maio 25, 2008 at 12:29 am
O afonso leonardo faz-me lembrar os “cientistas” da “educação” que ao tudo misturarem de forma a se auto intitularem pós-modernos nada de produtivo acrescentam ao seu romântico discurso!
Desta forma, ou o afonso leonardo é um apóstolo do pós-modernismo ou um potencial apreciador dos dinheiros públicos vindos do orçamento de estado para este sector 🙂
Maio 25, 2008 at 12:40 am
http://boicote.pt.vu/
Maio 25, 2008 at 2:30 am
Isabel Alarcão, coordenadora do “estudo do CNE”, que obviamente não é “estudo nenhum” (basta pensar no pessoal do dito “estudo” que há anos debita a mesma coisa na forma banal e ultrapassadíssima), é uma figura demais conhecida ligada ao que se designa no meio de “eduquês” e do “lobby das escolas superiores de educação”, que como se sabe estão completamente ás moscas e necessitam de manter muitos daqueles (imensos) amigos com ordenadões de fazer corar de vergonha qualquer um que a tenha na cara. Mas este pessoal (não) tem mesmo vergonha nenhuma.
Sou a favor que os professores dos quadros das ESES se mantenham nas escolas mas que estas encerrem por uns tempos (como já aconteceu no Ensino – não sei é se ainda se designavam de Escolas do Magistério Primário (?). Os professores têm trabalhos de investigação e até de apoio ás escolas, ou trabalhos académicos a realizar. Desta forma, reestruturavam-se e ganhavam qualidade.
Mas como a maioria são “convidados” a coisa tornou-se algo surrealista. Como “atender a tanto “amigo”!!! E a resposta do Valterzinho não podia ser outra. Inventam-se fusões por causa dos “traumas”.
Maio 25, 2008 at 3:21 am
Será interessante, contudo, tecer algumas considerações sobre “traumas nas transições…”:
1. “trauma” é um conceito do campo médico que foi apropriado por algumas escolas de psicologia e de psiquiatria da linha psicodinâmica que como se sabe está muito desacredita actualmente tanto aos pressupostos (teorizações) como quanto ás práticas clínicas ou psicoterapêuticas. Neste sentido, “trauma” tem sentido em termos filosóficos, ou genericamente, em termos do senso comum. Contudo trata-se, segundo referido, de um estudo, de investigação, e como tal não tem cariz filosófico ou corrente.
2. “trauma”, do ponto de vista do simbólico social, uso corrente pelas pessoas, tem impacto junto da chamada “opinião pública”, pela vulgarização a que anteriormente se assistiu a estas correntes da psicologia Clínica, em tempos recentes na sociedade portuguesa, pelo que a apropriação e consequente aprovação pelo comum das pessoas (O.P.) para a instauração de qualquer medida de política educativa está facilitada (subliminarmente é preparado o terreno para veicular que qualquer ponto de vista que contrarie esta posição pelos professores é, não fruto da bondade da medida, mas pela “resistência á mudança dos professores”, “perca de regalias” e outros mimos que tão bem conhecemos nestes últimos três anos);
3. Há muitos psicologos e psiquiatras, que por interesses inconfessos ou inconfessáveis, de bom grado publicamente virão em completa defesa da negação da própria formação que obtiveram, até porque os (seus) consultórios têm muitos “traumatizados” e eles desejam ter “muitos mais clientes”. Não é pois de admirar que, brevemente, surjam uma série de eminências pxicologicas, Luís Sá ou Joana Amaral Dias, a fazer a apologia “política” de tão extraordinária medida;
4. colocando contudo a hipótese de estudo psicológico,”trauma na transição”, teria que se definir cientificamente o conceito de trauma e de desenvolvimento que teria que combinar um conjunto imenso de factores a contolo a serem estudados/investigados numa criança ao longo dum período de tempo considerável da sua vida e, como se trata de toda uma população (generalização), de uma amostra muito significativa de crianças e jovens da população portuguesa durante anos. Obviamente, nunca foi realizado em Portugal nada com esse caracter e pelo que disse anteriormente nem seria possível pelo que referi no 1º ponto. E mesmo que existisse, qualquer estudo que se preze diria, parece…ou tendencialmente. Claro. A investigação em áreas do humano não é a mesma das ciencias ditas “exactas”.
5. Outras
Maio 25, 2008 at 11:31 am
Hoje no JN numa rubrica em que questionam o cidadão comum, perguntavam “Concorda com o professor único até ao 6.ºano?” As cinco pessoas que responderam eram todas contra.
Maio 25, 2008 at 12:26 pm
Uma paródia a propósito do rofessor único:
http://sol.sapo.pt/blogs/arrebenta/archive/2008/05/21/O-Professor-_DA00_nico.aspx
Maio 25, 2008 at 3:01 pm
DA (19),
Verifique se o “fafe” (e etc) não se está a apropriar de seu nick!!!
Maio 26, 2008 at 9:14 pm
Em França ,realmente são 5 anos na Primária mas o nº de anos de estudo até ao 12º ano é exactamente o mesmo .Lá existem turmas de nível nos dois primeiros anos do 2º ciclo e a partir daí há uma orientação séria ,os alunos que não são bons no estudo acabam por serem encaminhados para cursos profissionais e assim no Lycée só está lá quem quer continuar estudos na faculdade .