Confesso ter-me passado meio despercebida de início a aparente investida ministerial no sentido da proposta do alargamento da monodocência ao 2º CEB, nomeadamente naquelas que podem ser consideradas as áreas nucleares do currículo. Ontem num noticiário radiofónico apanhei de fugida algo como o Governo estar interessado em reforçar a formação de «professores de perfil generalista» para o 2º CEB. Agora leio algo como uma figura de «professor-tutor» para leccionar áreas tão díspares como Português, Ciências ou Inglês.
Não estou perfeitamente a par das propostas concretas, se é que existem, e até agradeço que me elucidem para melhor e mais fundamentadamente poder opinar, mas gostaria desde já de sublinhar a minha mais completa discordância em relação a uma proposta que vise, mesmo que de forma moderada, tornar o sistema actualmente em vigor no 1º CEB extensível ao 2º CEB, pois isso significaria – sem desprimor para ninguém – um alargamento da infantilização do ensino e do alongamento da descaracterização do currículo dos alunos para 6 anos.
Eu passo a explicar melhor, o porquê do meu veemente repúdio por tal solução, que claro só poderia surgir de quem surge, alguém que me parece também algo generalista e pouco aprofundado nos conhecimentos teóricos e de ordem jurídica que exibe.
- Antes de mais, com o alargamento do ensino pré-escolar, são cada vez menos as crianças que começam o seu percurso escolar no 1º CEB. A minha miúda ainda não fez 4 anos e já sabe vários termos em inglês, já reconhece a genralidade das letras e números, conseguindo nomear e identificar quantidades de um dígito. No 1º ano da escolaridade oficial não estará no ponto quase 0 em que esteve a minha geração e outras seguintes. Por isso, o trabalho do 1º CEB já pode beneficiar de alguns alicerces prévios que antes não existiam.
- Para além disso, o défice crónico da nossa Educação é na capacidade de aplicar efectivos conhecimentos académicos em situações concretas, seja em avaliações comparativas seja na “vida real“. Muitos dos alunos que terminam a escolaridade obrigatória são analfabetos funcionais e pouco parecem saber de matérias essenciais – já não falo do Português e da Matemática – como as Ciências Físicas e Naturais, a História e a Geografia (por ordem alfabética, para não estabelecer hierarquias relativas). Alargar um regime de ensino “generalista”, para mais em monodocência, é piorar ainda mais esta situação. Tamanho disparate só pode mesmo sair de mentes desligadas da realidade, envolvidas em papéis e números, e submersas em algumas noções vagas da função da Educação e das necessidades que deve suprir, para além da mera socialização e do bê-á-bá. Alargar a monodocência generalista é algo muito próximo do que alguns historiadores da Educação denominaram como a “escola mínima” do salazarismo, sendo que talvez ao fim de três anos os alunos de então soubessem – de acordo com a época, os eus meios e solicitações – aquilo que assim se saberá ao fim de seis.
Mas há mais. Em relação ao próprio exercício da docência e aos seus aspectos pedagógicos, não tenho qualquer dificuldade em abraçar as críticas dirigidas por alguns dos vultos ligados ao Movimento da Escola Moderna e à Escola da Ponte, quando consideraram que a monodocência, “coadjuvada” ou não, é um «crime educativo» (Ademar dos Santos no Abnoxio) ou que destrói qualquer hipótese de criação de uma equipa educativa (José Pacheco, em texto inserido neste volume).
Não sei se as fundamentações são concordantes, mas no meu caso a monodocência, explicitamente baseada na preferência por professores generalistas para leccionarem matérias que exigem já algum domínio teórico, será apenas mais um passo para a completa decadência da qualidade do nosso ensino. E afirmo-o como professor mas principalmente como pai consternado pelo que esperará a minha descendência. Mesmo alargando a escolaridade obrigatória para 12 anos (eventualmente com dois ciclos de 6 anos como alguém propõe por aqui) isso seria uma medida com um impacto brutalmente negativo no nível das aprendizagens (ou das competências) desenvolvidas pelos alunos.
Eu percebo que as ideias subjacentes, neste moemnto, a tal proposta são outras e menos lineares: antes de mais tentar novas formas de “poupar” professores e, em simultâneo, de reduzir a autonomia dos docentes ao tornar o seu trabalho naquilo que também um dos autores acima referidos designou como “arquipélagos de solidão“. Para além de que remodelar os cursos de formação incial de professores seriam uma forma enviesada de compensar o ensino politécnico pela decadência em que se têm visto nos últimos anos. O que se percebe, vindo a ideia de quem vem.
Se o ECD foi uma afronta e um atentado profundo à dignidade profissional e social dos docentes, qualquer avanço no sentido da monodocência no 2º CEB com base em argumentos demagógicos (o choque da transição de 1 docente para 10 é um mito, pois os Conselhos de Turma já são formados em muitos casos por apenas 6-7 docentes) e mesmo que apresentado com fundamentos “pedagógicos” será algo mau, muito mau, mas mesmo muito, muito, muito mau.
A resistência empenhada e activa a este tipo de absoluto disparate – completamente contrário à própria lógica dos agrupamentos e da colaboração dos professores do 2º CEB com os do 1º – é algo em que se devem envolver não só os educadores de profissão, mas principalmente as famílias que ainda tenham esperanças em que a Escola Pública forneça um serviço com uma qualidade mínima.
Janeiro 16, 2007 at 9:58 pm
Assino por baixo!
Janeiro 16, 2007 at 10:05 pm
E não me engano se adiantar que daqui a seis ou sete anos quando for visível a asneira, a culpa não vai ser de quem a inventou, mas sim do desgraçado do professor, que está na sala de aula, todos os dias, a tentar dar o seu melhor.
Janeiro 16, 2007 at 10:50 pm
Aconselho-os a lerem as notícias de alto a baixo!!!! não é proposta a monodocência, mas sim um professor titular(tutor… ou que lhe queiram chamar) coadjuvado por professores ESPECIALIZADOS.
Janeiro 16, 2007 at 10:58 pm
Meu amigo, por favor leia esta notícia http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/edicion_impresa/politica/pt/desarrollo/728714.html e diga-me se o que lá está não é a formação de um docente generalista com 30 créditos em várias matérias, como se Matemática, História ou Ciências fossem sub-matérias académicas.
E depois leia esta http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/edicion_impresa/politica/pt/desarrollo/728704.html que não é muito diferente.
E o diploma está para promulgação na Presidência, não é uma ficção.
Aterradora a realidade, vai-me desculpar.
Janeiro 16, 2007 at 11:16 pm
“…e como explicou Válter Lemos ao Diário Económico, com o novo sistema passará a existir «um professor-tutor que tenha capacidade para leccionar as áreas básicas (Português, Matemática, Ciências da Natureza, História, Geografia de Portugal e Expressões) apoiado por docentes de outras áreas profissionais».”
Alguém me explica o que são “docentes de outras áreas profissionais”?
Cheira-me a Finlândia… A propósito de uma reportagem que passou na sic n sobre uma escola finlandesa… era este o modelo! … mas, em Portugal?
Se já ouvi dizer a colegas do 1º ciclo que “matemática é o mínimo porque não gosto…”
Mas alguém pode ensinar o que não gosta????
(Saliento apenas que reconheço a importância de um bom professor do 1º ciclo. (E são muitos)!)
Janeiro 16, 2007 at 11:56 pm
O título está uma maravilha! 🙂
(sem ofensa para os ditos, que nunca se lembraram de ensinar os seus rebentos dessa forma)
Agora, quanto ao choque da transição de 1 docente para muitos, é argumento que já não pega nem com cuspo. Logo no ano em que os alunos do 1º ciclo lidam com mais 3 ou 4 professores para além do titular?
E só mais um tópico, não sei se concordarás comigo, mas já é suficientemente aberrante o que se verifica no 1º e 4º grupos de docência (como é que se chamam agora?), com uma formação inicial que não abarca(ou) ambas as áreas a leccionar.
Janeiro 17, 2007 at 12:17 am
A ideia de, no 5º e 6º anos, haver uma transição menos drástica em número de docentes não me desagrada. A minha experiência como professora de 3º ciclo e secundário foi-me mostrando que algo errado se passa no 2º ciclo.E a minha experiência como mãe de dois jovens que por lá passaram diz-me o mesmo.
Por isso,a ideia em si não me desagrada.Em comentários anteriores falou-se nisto.Penso que estes jovens devem, nestes dois anos, trabalhar métodos de trabalho e de estudo, evoluir no saber estar, com grande ênfase para as áreas artísticas e motoras.
No entanto, confesso que a informação que tenho (temos)é pouca. Eu quero saber como será garantida a qualidade da formação dada a estes professores “generalistas”. E não concordo com a leccionação da Matemática e do Português por um mesmo professor.Mas´vejo vantagens na leccionação por um mesmo professor de outras áreas.
Finalmente, fiquei sem saber se os programas se irão manter(nomeadamente a nível de extensão e de adaptação ao nível etário dos alunos).
Temo que uma proposta que pode ser boa possa ser destruída por esta mania de se querer fazer tudo a correr, de constantemente se pôr os carros à frente dos bois, da fuga para a frente a todo o vapor.
O discurso hoje não está fácil.Estou com 1 gripe dos diabos.
Janeiro 17, 2007 at 12:22 am
A novidade não está na prática. A novidade está na publicitação.
Vejamos: sou professora de HGP e LP. Mas, também de EA (logo, por vezes também de MAT) e de FC. Tenho ainda algumas horas na sala de informática onde acompanho regularmente turmas… Digam-me lá, onde está a novidade?
O problema é que com tanta diversidade perde-se a qualidade. Há áreas que inevitavelmente ficam para trás… não é simplesmente possível o desdobramento.
Janeiro 17, 2007 at 12:33 am
Com esta proposta, áreas como EA, FC e outras que tais deixam de fazer sentido, se é que alguma vez fizeram!
O que de melhor esta proposta pode conter é precisamente diminuir a diversidade e aumentar a qualidade, sendo que a qualidade não tem que ver com a quantidade e aprofundamento da informação contida nos actuais programas de 5º e 6º anos. Por isso repito que, a manterem-se os mesmos programas, mais vale deixar tudo como está. Mal!
Janeiro 17, 2007 at 12:49 am
Tenho dúvidas.
Irritam-me os 180 minutos semanais de que disponho para trabalhar com os alunos língua portuguesa.Os conhecimentos emparedados também me incomodam, enchem as cabeças de cimento.Se se trabalha com métodos da Escola Moderna ou da Ponte, a coisa não será assim. Mas na nossa escola pública…Se pretendo que os alunos entendam o sentido da palavra equinócio que apareceu no texto, desligam ou barafustam porque é das ciências ou da geografia…
A infantilização, que vi entrar como argumento, existe quer no 1º,quer no segundo ciclo.
O debate sem preconceitos, sem corporativismo, sem populismo do assunto pode ser muito interessante e útil.
Poderei descobrir que sou mesmo um mono mas
ainda a procissão vai no adro.
Janeiro 17, 2007 at 1:14 am
Li comentários novos que me obrigam a alguma reflexão. Os métodos de estudo e de trabalho o famigerado saber estar, as artes de que fala a Fernanda devem estar lá desde o princípio. Não é mudando de professor de ano a ano (frequente acontecimento no 1º ciclo)que se vai lá.Um bom conhecimento dos alunos, dos seus progressos ao longo do tempo ajudaria ao desenvolvimento de cada um. Nestes seis primeiros anos o domínio da língua apareceria ligado a todas as matérias trabalhadas e de um modo particular à matemática.E como a Luna diz, temos a prática. No Estudo Acompanhado trabalhamos matemática com os alunos. Já fiz montes de substituições de matemática com o planozinho. Isso é que é incómodo porque sem aviso, sem conversa prévia com o “dono” da disciplina, lá tenho que eu ir meter-me à minha moda, situação geradora de mau estar e conflito. Claro que FC não faz qualquer sentido, nunca fez.
Janeiro 17, 2007 at 1:30 am
Num texto do Paulo, de há uns dias atrás “Se estamos todos de acordo, tanto melhor” (julgo ser este o título),gostava de chamar a vossa atenção para o comentário nº4, penso que do Sizandro, que considero oportuno e muito claro sobre este assunto.
Janeiro 17, 2007 at 8:53 am
Eu também sou professor de LP e HGP, Estudo Acompanhado e numa turma ainda TIC.
Lecciono a uma turma 11 horas e a outra 10+1 apoio (olha as 22 já feitas).
Poderia ainda leccionar Formação Cívica.
Se isto é monodocência já acho excessivo.
Agora formar professores “generalistas” com 30 créditos de Ciências+30 créditos de Inglês+30 créditos de História e por aí adiante é um disparate e afirmo-o redondamente sem sequer olhar a questão como docente.
Como pai a perspectiva deste modelo de ensino aterroriza-me e explica que muita gente – com muitos professores à cabeça – andem a optar pelo ensino privado.
A Escoila Pública assim será apenas um imenso Jardim de Infância.
A todos os níveis.
E discordo da análise da Fernanda sobre o que está mal no 2º ciclo, assim de forma vaga. Porque os do Secundário dizem o mesmo do 3º ciclo e os do Superior de tudo o resto. Ou então a sua análise padece do mal de atirar as culpas para o que está antes, porque parece que sim.
Os males são mais profundos do que isso.
Não é um patamar que está errado.
É toda a configuração da escada e as regras para por lá passar.
Janeiro 17, 2007 at 9:34 am
Paulo:
Tenho visitado o seu blog em silêncio. Estive quase a comentar, sobre o seu post Professores críticoe e reflexivos como?, que penso que é momento de os professores que produzem facilmente bastante escrita lúcida (como considero que é o seu caso), começarem a tentar publicar em jornais, muito mais lidos do que os blogs, contrapondo as suas ideias fundamentadas no conhecimento do “terreno” do ensino público às tantas opiniões nos jornais expressas por muitos que nada conhecem desse terreno nem nunca lá estiveram, ainda que vários estejam no ensino universitário.
O assunto deste seu post que leio já com atraso, sobre a formação de professores “generalistas” levou-me (porque o Paulo diz que não tem estado muito atento à questão) a dizer que tenho, no meu cantinho, mesmo muito antes das últimas “novidades”, manifestado a minha preocupação pelo rumo que levou boa parte da formação de professores para leccionação no 2º ciclo desde a aprovação da nossa Lei de Bases do Sistema Educativo (e não pelos princípios que se conseguiu que ficassem expressos nela, mas pelo contornar e até desvirtuar dos mesmos ao serem aplicados). Hoje, perante as últimas notícias que aqui refere, escrevi o meu último post sobre o assunto, último porque perdi a paciência, afinal estou desde Setembro “fora” (aposentada) e conheço desde há tempo demais a evolução negativa de grande parte da formação dos professores do 2º ciclo. Se quiser dar-se ao trabalho de passar pelo meu último post, encontrará lá link para outro com informação sobre o então ante-projecto bem como sobre pareceres, nomeadamente das próprias ESEs, a que esta equipa do Ministério da Educação fez ouvidos surdos, tendo sido aprovado em conselho de ministros o novo regime de formação de professores com desprezo de pareceres autorizados, sem divulgação prévia e ainda, neste momento, sem se ter acesso à sua leitura.
Desculpe o atrevimento de mencionar a minha modesta insistência na questão, apenas pensei que poderia dar-lhe alguma mais rápida informação mediante o que eu própria escrevi como questão que (há cerca de dois meses atrás), andava a passar despercebida.
Janeiro 17, 2007 at 10:05 am
Realmente esta é uma questão a que estive meio (quase totalmente?) desatento.
A culpa é só minha porque cheguei a receber o ante-projecto do actual diploma por parte de colegas e – sinceramente – não o li com toda a atenção e sempre pensei que, como ainda existiam negociações, o disparate fosse barro atirado à parede.
Displiscência e credulidade em excesso.
O seu reparo e tudo o que já escreveu no seu blog sobre este tema foi devidamente atempado. Ao contrário do que se passou por aqui. E repito que não por falta de alguns avisos.
Janeiro 17, 2007 at 4:29 pm
Cada vez me recordo mais de uma frase de uma nossa cientista aqui há uns largos anos. Dizia mais ou menos assim ” mas esta gente não sabe que ensinar meninos não é como encher chouriços”. Passados quase uma vintena de anos, esta gente ainda não percebeu…