Outro engano que grassa em alguns espíritos passa pela utilização do termo liberalismo para designar o tipo de medidas que se pretendem colocar em prática pelo Min. Educação em relação á carreira docente. No sentido mais lato do termo, o liberalismo é a crença no valor supremo da liberdade individual.
Comecemos por uma clarificação em relação ao conceito, pois o liberalismo tem, pelo menos, uma dimensão política e outra económica e essas dimensões são entendidas de forma diferente, por exemplo, na Europa Continental, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Na Europa, ser “liberal” tem uma ligação mais forte à dimensão económica e é normalmente associado à direita política e ao combate contra a intervenção do Estado na economia. Nos States passa-se o inverso, porque liberal é associado à esquerda e, curiosamente, aos que defendem um papel mais interveniente do Estado na sociedade, principalmente no sentido da redistribuição da riqueza.
A divisão pode ser mais matizada, mas em traços gerais esta é a caracterização mais sumária do que é entendido por “liberalismo”.
Ora no sentido europeu do termo, as políticas dirigistas, restritivas e de reforço do controlo da acção dos professores do Ministério da Educação podem ser tudo menos liberais, nomeadamente na tal acepção mais original e ampla do conceito que o faz radicar no privilégio da liberdade individual.
Por isso, não confundamos as coisas: pode haver uma retórica liberal em aspectos como a tentativa de flexibilizar a política de contratação directa de professores pelas escolas ou de flexibilização do mecanismo de escolha das escolas pelas famílias. Agora em relação à carreira docente o que se propõe é tudo menos liberal. Aliás, se há uma negação essencial do liberalismo é um sistema de quotas que artificialmente condiciona as aspirações e a livre progressão na carreira de qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos.
Na troca de opiniões que se vai estendendo em alguns posts noto a permanência da utilização da expressão “topo de carreira” para definir a fase final da carreira docente, servindo isso para o argumento de não ser a docência diferente de outras carreiras, no sector público ou privado, em que nem todos os seus elementos atingem esse patamar.
O problema é que sendo a docência caracterizada pela horizontalidade e pela inexistência de categorias na carreira, o que actualmente existe é um “topo salarial” baseado na antiguidade, algo que como muitos saberão não é assim uma coisa tão estranha. O sistema de diuturnidades não passa disso mesmo. Um sargento, mesmo permanecendo sargento, vai ganhando mais com a antiguidade. Pode achar-se mal, mas é o que existe. E foi criado para evitar que a docência tivesse algum atractivo e, quando era necessário manter no ensino público bons profissionais, eles não debandassem para outras paragens. Pode querer-se mudar o sistema, o que não se deve é baralhar as coisas e justificar as decisões com interesses meritocráticos ou de compensação dos melhores.
Ora o que se pretende actualmente não é evitar que os professores cheguem a um inexistente topo de carreira, mas tão só e apenas vedar-lhes o referido topo salarial que actualmente lhes é acessível.
Se o que estivesse em causa fosse mesmo recompensar o mérito, então a criação de níveis na carreira implicaria a criação de uma remuneração extra para essas categorias mais elevadas e isso teria todo o sentido. Só o que se quer não é, dentro de uma carreira já existente com apenas uma categoria, sobrepôr-lhe outra(s) que motive(m) os docentes para a exaltada excelência, mas simplesmente barrar a progressão salarial da maior parte. Apenas isso e mais nada. E perante tal facto, não há teoria da gestão que possa valer.
Sou alérgico a todo o tipo de apressada e despropositada comparação de tudo o que se passa no plano político nacional com o “fascismo”. Já tive muitas discussões sobre isso, porque considero que andar com o fascismo – ou o salazarismo, como prefiro especificar – para cá e para lá só o vulgariza e o torna algo demasiado corriqueiro. Esse tipo de paralelismos só deve ser feito quando a substância o justifica e não quando parece dar jeito para dirigir uma ofensa ao interlocutor ou ao(s) visado(s).
Por isso mesmo é como excepção que considero que a actual política governamental para com os docentes significa um retorno ao passado em dois planos:
Antes de mais a tentativa de transformar o professor não num profissional com autonomia na sua acção pedagógica quotidiana e com uma perspectiva alargada de carreira, mas meramente num funcionário da máquina estatal de educação de massas está bastante próximo do esvaziamento da formação académica e proletarização salarial que o Estado Novo procurou fazer do papel do professor primário que, na fase final da Monarquia Constitucional e na Primeira República, tinha assumido um papel de relativo destaque na sociedade. De qualquer forma, a diferença é que o Estado Novo compensava esse esvaziamento e menorização político-profissional com um investimento retórico no papel simbólico do professor que agora claramente deixou de existir.
Por outro lado, e em termos organizacionais, a recuperação um modelo hierárquico da Escola em que existe uma cúpula dirigente evoca, tanto na nomenclatura (o termo de “professor titular” não é novo, só que então era o professor titular de uma determinada cadeira ou disciplina) como na substância, o tempo em que os Liceus eram dominados pelas figuras dos reitores, então de nomeação governamental, algo que já esteve mais longe de acontecer atendendo à permanência da corrente que continua a defender a nomeação de gestores.
Para quem quiser aprofundar estas questões nada como confirmar com a leitura de obras como O Estatuto Socioprofissional do Professor em Portugal (1901-1951) de Áurea Adão, publicado em 1984 pelo Instituto Gulbenkian da Ciência ou Os Liceus: Organização Pedagógica e Administração (1836-1960), de João Barroso e publicado em 1995 pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Se o fizerem, notarão certamente mais pontos de contacto entre as soluções de outrora e as actuais do que talvez esperariam. E, principalmente, perceberão que agora estamos muito longe de soluções viradas para um futuro inovador por muito que nos queiram fazer crer que se está a criar um Novo modelo de Estado.
… e como sempre tomando os professores como alvo preferencial. Hoje no Jornal de Negócios vem uma memorável entrevista de Maria de Lurdes Rodrigues, daquelas para guardar para a posteridade e memória futura, que irá ser objecto de análise m-u-i-t-o detalhada aqui no Umbigo porque desta vez houve um certo esmero no desacerto discursivo, seja na incoerência, seja no aparente desconhecimento, seja na demagogia.
Percebe-se que MLR se sente segura no cargo e com as chamadas costas quentes, pois alarga a frente da investida contra a classe docente e envereda por novos caminhos com a manifestação de movas opiniões sobre o sistema educativo.
Aliás, parece-me mesmo que “opiniões” é a palavra certa para certas afirmações da Ministra pois muitas carecem aparentemente de “conhecimento”, pois já os gregos distinguiam doxa e logos, não sendo por acaso que a primeira se associava ao mito e o segundo ao pensamento racional. Não que ache o discurso produzido da ordem do irracional, muito pelo contrário, ele é infelizmente racional; o problema é que todo ele se parece fundamentar em informação parcial ou lacunar sobre o sistema educativo e o seu funcionamento ou então elabora demagogicamente a partir de dados selecionados para produzir dano nos visados, encarados de forma clara como o “inimigo” a domesticar, sendo o mais notável o uso das estatísticas homólogas sobre o número de faltas durante o mês de Setembro que sabemos ser um falso mês de aulas, pois em muitos estabelecimentos o funcionamento em pleno apenas aconteceu durante duas semanas.
Mas não há problema, atira-se com 40% de faltas a menos dos profes, à laia do “estão a ver como aquela malandragem anda com medo de mim e andam todos com medo e agora até dão aulas?”.
Mas essa é uma gota num imenso mar de retorcidelas argumentativas em que se descola dos factos e se expõem “novas” ideias verdadeiramenteinenarráveis. Fiquemo-nos só pelos destaques de capa, que mais logo iremos ao miolo:
Os docentes deverão poder concorrer à liderança de escola que não a sua – a ideia seria interessante e concebível, não fosse a forma como o Ministério pretende “arrumar” os quadros de professores por agrupamentos (onde estão as vagas nas escolas alheias para os candidatos?) e principalmente aqueles em que a Ministra pensa, quando desenvolve o raciocínio. Como veremos, se lermos o interior, ela pensa principalmente nos membros de Conselhos Executivos que, não sendo reconduzidos no cargo em eleições pelos colegas, ficarão “fragilizados” nas suas Escolas. Eu percebo a lógica: se brevemente alguns dos seus mais empenhados aliados em Executivos forem corridos por facções críticas, há que protegê-los da turba ululante. É uma forma de proteger os “seus”, já se percebeu. Mas segundo essa lógica, se Sócrates perder as próximas eleições deveria poder emigrar e candidatar-se a Primeiro-Ministro do Burkina Faso ou da amada Finlândia o que, agora vendo bem a coisa, até que nem seria uma má ideia. Agora esta noção da “fragilização” dos detentores dos cargos executivos que não venham a ser reeleitos é particularmente interessante e percebe-se que muito estranha aos hábitos de funcionamento democrático que, apesar de algumas distorções, têm sobrevivido nas escolas.
Por outro lado a Ministra gaba-se do aumento de alunos neste ano lectivo como se fosse quase obra do Governo, a multiplicação das criancinhas quase que por geração espontânea. Claro que aumentaram, pois a rede do pré-escolar está em expansão. Na minha freguesia aumentou muitos por cento, pois desde o ano passado que finalmente há rede pública desse nível de ensino! Se a Ministra fizesse a gentileza de desagregar os números por nível de ensino (ainda não estão disponíveis esses números em lado nenhum que eu os possa consultar) talvez percebessemos do que falamos. A atribuição do aumento de alunos a cursos de tipo profissional parece-me carecer de fundamentação empírica, mas até posso estar errado. Mas enquanto se elabora sobre o vazio informativo é sempre possível avançar sem receio do desmentido formal.
Por fim, nas letrinhas pequenas retorna-se à evidente inverdade de o Ministério querer remunerar melhor quem assumir maiores responsabilidades nas Escolas. Isto não é verdade tanto porque o leque salarial é o mesmo e, portanto, ninguém vai receber mais, como porque essas pessoas serão obrigadas a permanecer mais horas na Escola, o que faz reduzir o valor unitário do seu tempo de trabalho. E o que acabei de escrever é objectivo, não é opinião minha, colhida ali na esquina ou em qualquer assessor comunicacional. De acordo com o ECD que o Ministério propõe ninguém vai ganhar mais e muita gente vai mesmo deixar de poder ganhar mais. Em contrapartida, serão muitos os que irão trabalhar mais pela mesma remuneração.
Mas aconselho vivamente a leitura desta entrevista – tal como MLR me mandou ler a proposta de ECD, o que obedientemente tenho feito a cada nova versão – e destacaria ainda a ideia de desmontar o sistema nacional de colocações que David Justino tanto se esforçou por concluir, de modo a reduzir as hipóteses de compadrio que existiam a nível regional e local, em favor de sistemas regionais de colocação de professores.
Ou seja, o regresso a um passado não muito distantee, se ligarmos esse desejo de regresso a outras medidas destinadas ao acerto directo de contratações pelas escolas, a todo um mundo opaco de potencial clientelismo e desvirtuamento do escalonamento da classificação dos docentes, abrindo de forma mais escancarada uma via para a reinstalação de alguns dos piores vícios do “sistema”, que ainda não tinham sido completamente erradicados e já vêem a hipótese de voltarem em força.
Mas claro que assim os “fiéis” poderiam recrutar outros fiéis ou, pelo menos, novos vassalos para a hierarquia feudal piramidal que no actual Ministério passa por ser o modelo “organizacional” ideal.
Já está disponível, com data de 31 de Outubro, uma nova versão remendada do que já era uma manta de retalhos feita sobre o antigo ECD.
O que eu não percebo é se o anterior ECD era assim tão maus, porque não decidiram fazer uma coisa nova de origem, em vez de se andarem a perder num emaranhado de revogações, adaptações, aliterações, murações e outra aberrações em cima do articulado anterior.
Como me fazia notar um colega meu ontem, por entre comentários sobre o sketch dos Gato Fedorento sobre a titular da pasata, agora tudo se joga nos negritos do texto, pois palavra aqui, palavra ali, fazem-se acertos cujo sentido escapa ao mortal mais desatento.
Reparem nas alterações de detalhe no artigo 11º do capítulo II do aditamento ao ECD, contantes nas páginas 53 e 54 do documento, e expliquem-me a sua razão se existirem pois, em especial no caso da alínea c) do nº 1, nenhum de nós conseguiu perceber ao que aquilo anda.
O que ressalta para quem se preocupa em ler todas as versões e sucessivas alterações, é um constante treino no sentido de aproximação a um alvo que parece desconhecer-se. Dá-se um tiro e vai-se lá à frente ver se acertou. Não? então lá vai mais um ajustezinho e ziiinnnggg, será que desta ficou mais perto ou será que matámos um inocente esquilo que ia de passagem?